terça-feira, 20 de agosto de 2019

PARA SE ENTENDER O BRASIL: 'BANDIDOS NA TV', DA NETFLIX


À primeira vista, podemos afirmar que a sensacional série Bandidos na TV (Direção: Daniel Bogado, 2019), da Netflix, deve impactar diretamente na cabeça de dois tipos de público-alvo.

Primeiro, os estudantes e amantes do Direito e das ciências jurídicas - pois em cada fotograma que corre na tela, estão expostas a dualidade e lateralidade de pontos de vista, opiniões e declarações a respeito de fatos tão absurdos e polêmicos quanto corriqueiros, na atual 'sociedade monstro' em que vivemos. 

O incessante festival de conclusões opostas a que somos jogados, durante os 7 bem engendrados episódios desse espetáculo, nos remete aos clássicos princípios da verdade subjetiva, aqueles que nos lembram que cada um tem a sua razão, e todos estão convictamente certos dentro dela.

O segundo público-alvo - e esse, creio eu, o mais abrangente e importante - é aquele em que estamos inseridos. Todos nós, povo brasileiro.

Pois a série é de uma crueza e de uma sinceridade chocantes, ao relatar em todos os seus pormenores a até hoje insólita história de Wallace Souza, apresentador de um dos programas policiais de maior audiência em toda a história da TV do Estado do Amazonas - o Canal Livre

Sensacionalista e popularesco ao extremo (abusava de personagens caricatos e "do povão", quando entrava no ar), Wallace também não economizava nas tintas fortes em tom rubro de sangue: as matérias veiculadas no programa preenchiam a tela com cenas de corpos fuzilados, queimados ou esquartejados, e sempre versavam sobre o lado podre da marginalidade amazonense, delatando muitos assassinatos, chacinas, e o cada vez mais abundante tráfico de drogas em Manaus.

O programa, em sua fase áurea, no início dos anos 2000, era de uma audiência acachapante. Em pleno início da tarde, derrubava brincando medalhões como Rede Globo e outros canais da televisão aberta. Tamanha popularidade levou Wallace a entrar na carreira política e, em pouco tempo, se tornar o deputado estadual mais votado do Amazonas, e um dos mais bem votados do Brasil.

Tudo ia muito bem quando, durante uma ocorrência policial aparentemente medíocre, foi detido o ex-PM Moacir Jorge Pereira da Costa, o "Moa" - que, acossado em um interrogatório na delegacia, acabou confessando mais do que devia... 

A partir daí, uma trama macabra e demencial se revela, e passa a aturdir toda a comunidade amazonense: agindo a mando de Wallace, Moa, junto com o filho mais velho de Wallace (Rafael), e outros comparsas, seriam os autores da maioria dos crimes que eram exibidos no Canal Livre!

Ou seja, para dar audiência, Wallace promovia os crimes que eram exibidos em seu próprio programa - também aproveitando para ir à desforra com desavenças políticas e pessoais suas. 

Frente à bizarrice da trama, uma força tarefa é montada por delegados, promotores e Secretário de Segurança do governo do estado, no sentido de investigar e elucidar os crimes supostamente cometidos por Wallace. Este, já no seu papel de parlamentar, e rival político do governo estadual da época, passa a argumentar e coletar provas de que estaria sendo vítima de uma perseguição política.
Wallace Souza - de herói a bandido numa trajetória alucinante...

E por aí vai... até o trágico desfecho que já parece anunciado, dadas as proporções sufocantes a que o caso todo chegou, repleto de reviravoltas e dualismos.

Não deixa de chamar a atenção o incômodo 3º episódio da série, em que Wallace toca fundo o dedo na ferida do "Caso Coari", em que ele ajudou a desbaratar uma horripilante rede de prostituição infantil nessa que é uma das maiores cidades amazonenses, enfrentando a ira do prefeito e autoridades locais. Apesar das diversas provas coletadas contra ele pela força tarefa, e de tantas evidências acusadoras, realmente chegamos a pensar a certa altura: será que esse homem realmente não foi vítima de um complô?  Será que ele realmente não pagou um alto preço por ter mexido com quem não devia, medindo forças de uma maneira extremamente arriscada? Suposições...

A força das conveniências muitas vezes atira um homem para um lugar obscuro e distante do pensamento humano. Onde impera aquela velha máxima: "os fins justificam os meios". Não cabe a nenhum de nós julgar, taxativamente, se o protagonista da série estava certo, ou não. Mas a análise apurada de todo o problema ocorrido (junto com a dimensão social nefasta que ele carregava), pode nos trazer uma visão bem mais límpida sobre até onde vale a pena ou não 'nadar contra a maré'.

Quer entender um pouco mais do jogo sujo de tramoias e interesses sob o qual a nossa máquina pública se movimenta muitas vezes, infelizmente?

Quer entender um pouco mais o que é o Brasil? Assista 'Bandidos na TV'.

Eu recomendo. 

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

A GÊNESE DA CORRUPÇÃO E O ADVOGADO DO DIABO


Sempre bom rever Advogado do Diabo (The Devil's Advocate, 1997), dirigido por Taylor Hackford, e com atuações marcantes de Al Pacino, Keanu Reeves e Charlize Theron, dentre outros. 

É uma espécie de "filme de cabeceira" meu. Um clássico moderno do drama de horror, de matizes psicológicas. E sempre um excelente exercício de reflexão sobre a moral, a ética, e os preceitos humanos.

Muito advogado bom por aí deveria assistir e refletir também. E certos juízes, promotores, procuradores e ministros... hum, ainda mais.

No filme, Kevin Lomax (Reeves) é um advogado do interior, ambicioso e com grandes pretensões profissionais, que detesta perder nos tribunais. A partir de uma reviravolta em uma demanda, na qual ele acaba saindo vitorioso, mesmo com tudo contra ele, é descoberto pelo milionário e poderoso dono de uma das maiores firmas de advocacia de New York, John Milton (Pacino, simplesmente brilhante), e é chamado para trabalhar com o empresário.

A partir daí, Lomax se muda para a big apple com sua esposa, Mary Ann (Theron), onde estranhas coisas começam a acontecer, envolvendo o seu novo trabalho...
Charlize Theron e Keanu Reeves, o jovem casal de 'Advogado do Diabo' (1997)

Este é apenas o plot para uma história que vai se desenrolando de forma claustrofóbica e repleta de reviravoltas, onde cada vez mais uma sinuosa e triste verdade irá se aproximar para o jovem Kevin Lomax. 

O interessante a se observar em Advogado do Diabo é como a gênese da corrupção e da feiura de caráter está entranhada na natureza do ser humano. A trama do filme é inteligentemente engendrada de forma a relacionar sutilezas do comportamento errático de pessoas rumo à sua degradação completa, em comparação com certas passagens bíblicas (atenção para a cena do encontro entre a mãe de Lomax e Milton).

A partir de certo momento, somos apresentados a uma inevitável constatação, de que a soberba e a inegável condição de superioridade a que chegamos em determinadas situações da vida - competir para ganhar sempre, nunca aceitar a derrota - são as passagens para uma viagem sem volta rumo à perda dos nossos bens mais preciosos, justamente aqueles para os quais nunca damos o devido valor: o amor e a humildade.

(Especialmente para a sociedade norte-americana, da competitividade e vitória a todo custo, onde o termo loser, "perdedor", sempre assume uma conotação pejorativa terrível e destrutiva, o arcabouço dramático do roteiro fornece um soco no estômago, dos mais potentes).

Na incessante busca para vencer, vencer, vencer de qualquer forma, nos esquecemos do que já possuímos e acabamos perdendo - vida, saúde, racionalidade, sentimentos verdadeiros. E principalmente, dignidade e sossego, muitas vezes.

Um dia, um homem aparentemente simples habitou nesse mundo, e mostrou para as pessoas que não era necessário simplesmente vencer - não da forma como todos sempre imaginavam que era vencer. Com uma derrota (que custou a sua própria vida), ele mostrou que na verdade estava ganhando. Você sabe de quem eu estou falando?

Há de analisar e valorizar sempre as suas derrotas, por mais doloridas que sejam. 

Todas elas tem a sua substância, e o seu motivo de existirem.

Para muita gente, Advogado do Diabo pode soar simplório e até piegas. Mais uma fábula maniqueísta sobre o confronto entre o bem e o mal, e de como nos deixamos levar pelo "lado negro", diriam alguns críticos.

Mas eu o vejo apenas como mais um excelente exemplar de todas aquelas atemporais temáticas reflexivas de diversos autores na humanidade, sobre delírios de poder e desejos mundanos - Goethe já falava sobre essa assombrosa descida aos infernos em Fausto, lá nos idos de 1775, o homem cedendo às suas tentações, a danação total, e essa coisa toda... 

Tecnicamente falando, é um filme bem feito, com uma trama consistente e isenta daqueles furos vergonhosos que costumamos ver em produções mais recentes. 

Keanu Reeves, um astro condecorado que já foi muito malhado pela crítica especializada por outras atuações, mas que anda demonstrando cada vez mais seu valor, tem uma de suas melhores performances aqui, e a sua parceria com a bela e talentosa Charlize Theron prova que eles dão "liga", com uma ótima química que seria demonstrada no outro filme que repetiram juntos, o emocionante Doce Novembro (Sweet November, de 2001).
Al Pacino em cena da reta final do filme, quando a coisa literalmente pega fogo...

Em uma das cenas mais impactantes da reta final do filme, quando Milton revela a sua verdadeira identidade, e mostra a Lomax o advogado corrompido e ambicioso que ele realmente é, desvelando o seu caráter decomposto e viciado em poder, este simplesmente berra: "pois eu não perco, eu nunca perco! Eu nunca perco uma causa!". Milton, por sua vez, calmamente responde: "caso encerrado, nada mais a dizer".

Pronto. Uma simples confissão de frente para o grande júri - que somos todos nós (e a partir dali, cabe julgarmos o que é que estamos fazendo com nossas próprias vidas).

Ali estão declaradas as eternas arrogância e soberba do homem.
Charlize Theron, a bela Mary Ann, esposa do advogado Kevin Lomax no filme - você abandonaria um sorriso desse por fama e poder?