terça-feira, 20 de agosto de 2019

PARA SE ENTENDER O BRASIL: 'BANDIDOS NA TV', DA NETFLIX


À primeira vista, podemos afirmar que a sensacional série Bandidos na TV (Direção: Daniel Bogado, 2019), da Netflix, deve impactar diretamente na cabeça de dois tipos de público-alvo.

Primeiro, os estudantes e amantes do Direito e das ciências jurídicas - pois em cada fotograma que corre na tela, estão expostas a dualidade e lateralidade de pontos de vista, opiniões e declarações a respeito de fatos tão absurdos e polêmicos quanto corriqueiros, na atual 'sociedade monstro' em que vivemos. 

O incessante festival de conclusões opostas a que somos jogados, durante os 7 bem engendrados episódios desse espetáculo, nos remete aos clássicos princípios da verdade subjetiva, aqueles que nos lembram que cada um tem a sua razão, e todos estão convictamente certos dentro dela.

O segundo público-alvo - e esse, creio eu, o mais abrangente e importante - é aquele em que estamos inseridos. Todos nós, povo brasileiro.

Pois a série é de uma crueza e de uma sinceridade chocantes, ao relatar em todos os seus pormenores a até hoje insólita história de Wallace Souza, apresentador de um dos programas policiais de maior audiência em toda a história da TV do Estado do Amazonas - o Canal Livre

Sensacionalista e popularesco ao extremo (abusava de personagens caricatos e "do povão", quando entrava no ar), Wallace também não economizava nas tintas fortes em tom rubro de sangue: as matérias veiculadas no programa preenchiam a tela com cenas de corpos fuzilados, queimados ou esquartejados, e sempre versavam sobre o lado podre da marginalidade amazonense, delatando muitos assassinatos, chacinas, e o cada vez mais abundante tráfico de drogas em Manaus.

O programa, em sua fase áurea, no início dos anos 2000, era de uma audiência acachapante. Em pleno início da tarde, derrubava brincando medalhões como Rede Globo e outros canais da televisão aberta. Tamanha popularidade levou Wallace a entrar na carreira política e, em pouco tempo, se tornar o deputado estadual mais votado do Amazonas, e um dos mais bem votados do Brasil.

Tudo ia muito bem quando, durante uma ocorrência policial aparentemente medíocre, foi detido o ex-PM Moacir Jorge Pereira da Costa, o "Moa" - que, acossado em um interrogatório na delegacia, acabou confessando mais do que devia... 

A partir daí, uma trama macabra e demencial se revela, e passa a aturdir toda a comunidade amazonense: agindo a mando de Wallace, Moa, junto com o filho mais velho de Wallace (Rafael), e outros comparsas, seriam os autores da maioria dos crimes que eram exibidos no Canal Livre!

Ou seja, para dar audiência, Wallace promovia os crimes que eram exibidos em seu próprio programa - também aproveitando para ir à desforra com desavenças políticas e pessoais suas. 

Frente à bizarrice da trama, uma força tarefa é montada por delegados, promotores e Secretário de Segurança do governo do estado, no sentido de investigar e elucidar os crimes supostamente cometidos por Wallace. Este, já no seu papel de parlamentar, e rival político do governo estadual da época, passa a argumentar e coletar provas de que estaria sendo vítima de uma perseguição política.
Wallace Souza - de herói a bandido numa trajetória alucinante...

E por aí vai... até o trágico desfecho que já parece anunciado, dadas as proporções sufocantes a que o caso todo chegou, repleto de reviravoltas e dualismos.

Não deixa de chamar a atenção o incômodo 3º episódio da série, em que Wallace toca fundo o dedo na ferida do "Caso Coari", em que ele ajudou a desbaratar uma horripilante rede de prostituição infantil nessa que é uma das maiores cidades amazonenses, enfrentando a ira do prefeito e autoridades locais. Apesar das diversas provas coletadas contra ele pela força tarefa, e de tantas evidências acusadoras, realmente chegamos a pensar a certa altura: será que esse homem realmente não foi vítima de um complô?  Será que ele realmente não pagou um alto preço por ter mexido com quem não devia, medindo forças de uma maneira extremamente arriscada? Suposições...

A força das conveniências muitas vezes atira um homem para um lugar obscuro e distante do pensamento humano. Onde impera aquela velha máxima: "os fins justificam os meios". Não cabe a nenhum de nós julgar, taxativamente, se o protagonista da série estava certo, ou não. Mas a análise apurada de todo o problema ocorrido (junto com a dimensão social nefasta que ele carregava), pode nos trazer uma visão bem mais límpida sobre até onde vale a pena ou não 'nadar contra a maré'.

Quer entender um pouco mais do jogo sujo de tramoias e interesses sob o qual a nossa máquina pública se movimenta muitas vezes, infelizmente?

Quer entender um pouco mais o que é o Brasil? Assista 'Bandidos na TV'.

Eu recomendo. 

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

A GÊNESE DA CORRUPÇÃO E O ADVOGADO DO DIABO


Sempre bom rever Advogado do Diabo (The Devil's Advocate, 1997), dirigido por Taylor Hackford, e com atuações marcantes de Al Pacino, Keanu Reeves e Charlize Theron, dentre outros. 

É uma espécie de "filme de cabeceira" meu. Um clássico moderno do drama de horror, de matizes psicológicas. E sempre um excelente exercício de reflexão sobre a moral, a ética, e os preceitos humanos.

Muito advogado bom por aí deveria assistir e refletir também. E certos juízes, promotores, procuradores e ministros... hum, ainda mais.

No filme, Kevin Lomax (Reeves) é um advogado do interior, ambicioso e com grandes pretensões profissionais, que detesta perder nos tribunais. A partir de uma reviravolta em uma demanda, na qual ele acaba saindo vitorioso, mesmo com tudo contra ele, é descoberto pelo milionário e poderoso dono de uma das maiores firmas de advocacia de New York, John Milton (Pacino, simplesmente brilhante), e é chamado para trabalhar com o empresário.

A partir daí, Lomax se muda para a big apple com sua esposa, Mary Ann (Theron), onde estranhas coisas começam a acontecer, envolvendo o seu novo trabalho...
Charlize Theron e Keanu Reeves, o jovem casal de 'Advogado do Diabo' (1997)

Este é apenas o plot para uma história que vai se desenrolando de forma claustrofóbica e repleta de reviravoltas, onde cada vez mais uma sinuosa e triste verdade irá se aproximar para o jovem Kevin Lomax. 

O interessante a se observar em Advogado do Diabo é como a gênese da corrupção e da feiura de caráter está entranhada na natureza do ser humano. A trama do filme é inteligentemente engendrada de forma a relacionar sutilezas do comportamento errático de pessoas rumo à sua degradação completa, em comparação com certas passagens bíblicas (atenção para a cena do encontro entre a mãe de Lomax e Milton).

A partir de certo momento, somos apresentados a uma inevitável constatação, de que a soberba e a inegável condição de superioridade a que chegamos em determinadas situações da vida - competir para ganhar sempre, nunca aceitar a derrota - são as passagens para uma viagem sem volta rumo à perda dos nossos bens mais preciosos, justamente aqueles para os quais nunca damos o devido valor: o amor e a humildade.

(Especialmente para a sociedade norte-americana, da competitividade e vitória a todo custo, onde o termo loser, "perdedor", sempre assume uma conotação pejorativa terrível e destrutiva, o arcabouço dramático do roteiro fornece um soco no estômago, dos mais potentes).

Na incessante busca para vencer, vencer, vencer de qualquer forma, nos esquecemos do que já possuímos e acabamos perdendo - vida, saúde, racionalidade, sentimentos verdadeiros. E principalmente, dignidade e sossego, muitas vezes.

Um dia, um homem aparentemente simples habitou nesse mundo, e mostrou para as pessoas que não era necessário simplesmente vencer - não da forma como todos sempre imaginavam que era vencer. Com uma derrota (que custou a sua própria vida), ele mostrou que na verdade estava ganhando. Você sabe de quem eu estou falando?

Há de analisar e valorizar sempre as suas derrotas, por mais doloridas que sejam. 

Todas elas tem a sua substância, e o seu motivo de existirem.

Para muita gente, Advogado do Diabo pode soar simplório e até piegas. Mais uma fábula maniqueísta sobre o confronto entre o bem e o mal, e de como nos deixamos levar pelo "lado negro", diriam alguns críticos.

Mas eu o vejo apenas como mais um excelente exemplar de todas aquelas atemporais temáticas reflexivas de diversos autores na humanidade, sobre delírios de poder e desejos mundanos - Goethe já falava sobre essa assombrosa descida aos infernos em Fausto, lá nos idos de 1775, o homem cedendo às suas tentações, a danação total, e essa coisa toda... 

Tecnicamente falando, é um filme bem feito, com uma trama consistente e isenta daqueles furos vergonhosos que costumamos ver em produções mais recentes. 

Keanu Reeves, um astro condecorado que já foi muito malhado pela crítica especializada por outras atuações, mas que anda demonstrando cada vez mais seu valor, tem uma de suas melhores performances aqui, e a sua parceria com a bela e talentosa Charlize Theron prova que eles dão "liga", com uma ótima química que seria demonstrada no outro filme que repetiram juntos, o emocionante Doce Novembro (Sweet November, de 2001).
Al Pacino em cena da reta final do filme, quando a coisa literalmente pega fogo...

Em uma das cenas mais impactantes da reta final do filme, quando Milton revela a sua verdadeira identidade, e mostra a Lomax o advogado corrompido e ambicioso que ele realmente é, desvelando o seu caráter decomposto e viciado em poder, este simplesmente berra: "pois eu não perco, eu nunca perco! Eu nunca perco uma causa!". Milton, por sua vez, calmamente responde: "caso encerrado, nada mais a dizer".

Pronto. Uma simples confissão de frente para o grande júri - que somos todos nós (e a partir dali, cabe julgarmos o que é que estamos fazendo com nossas próprias vidas).

Ali estão declaradas as eternas arrogância e soberba do homem.
Charlize Theron, a bela Mary Ann, esposa do advogado Kevin Lomax no filme - você abandonaria um sorriso desse por fama e poder?

domingo, 30 de junho de 2019

BAUMAN E O EXERCÍCIO DIÁRIO DO DISCERNIMENTO


Faz pouco tempo (9 de janeiro de 2017), faleceu um dos mais importantes filósofos da contemporaneidade, o polonês Zigmunt Bauman, autor da célebre teoria da modernidade líquida.

E o que reza essa teoria?


Que nosso mundo entrou numa volubilidade intensa e irreversível de gestos e pensamentos, onde tudo praticamente é ditado pela efemeridade das relações, ações e reações humanas. "Vivemos em tempos líquidos, nada foi feito para durar", se tornou uma de suas mais famosas máximas, e que resume bem o seu pensamento. 
Zigmunt Bauman (1925 - 2017)

No mundo atual, o senso de modernidade em que vivemos se contrapõe ao sentido antigo da palavra - em outros tempos, para nossos pais ou avós, "modernidade" era um termo que se referia a mudanças coletivas e abrangentes para o todo social, visto que se refletiriam em uma maior segurança e bem estar para a humanidade. 

Hoje, "modernidade" passa a ter muito mais o sentido de trazer mudanças significativas para o indivíduo, do que para o todo em que ele está inserido - ainda que ele necessite do todo para viver e interagir. Exemplo disso são a velocidade das informações, dos relacionamentos e contatos, bem como das opiniões e atitudes individuais, reforçando esse sentimento que vivemos de não conseguir manter uma mesma identidade por muito tempo: vive-se uma notável efemeridade e fragilidade dos laços humanos, cimentando a superficialidade das emoções e ideias. 

E óbvio, tudo isso turbinado pelos avanços tecnológicos. A possibilidade de alavancar vários relacionamentos sem, de fato, se aprofundar em nenhum. 

A troca de informações e sentimentos é rápida e constante.

No mesmo momento em que somos tomados pela perplexidade de uma informação ou situação, outra já vem logo a seguir para avassalar nossos sentidos, de forma substitutiva.

"O líquido sofre constante mudança, e não conserva sua forma por muito tempo". Assim são nossos gestos e opiniões atualmente, ditados pelo ritmo frenético do cotidiano. Se amoldam às situações tal qual a água num copo, bem como são chacoalhados ou borbulham da mesma forma. 

Basta imaginar o frisson vivido pela chegada do homem à Lua, e o efeito de prazer e superação coletiva que isso causou em todo o planeta, em 1969. Eram tempos em que um feito extraordinário como esse era observado, repercutido, vivenciado e degustado pela mente coletiva (opinião pública) durante muitos e muitos dias, símbolo também de uma época em que os meios de comunicação eram mais moderados, e a informação, mais lenta. 

Imagine se isso, hoje, causaria o mesmo impacto.

Não há mais que se falar em uma modernidade sólida, pois. Isso foi em um outro estágio da humanidade. Agora há, isso sim, uma modernidade líquida.

E o efeito dessa onda atinge a vivência das mais diversas formas.

Quantas vezes você ou pessoas conhecidas suas já não observaram que diversas tendências do conhecimento também padecem dessa falta de solidez e permanência? "Ah, já não se fazem mais músicas ou filmes como antigamente". Ou "as obras de arte atuais não são tão relevantes quanto as de outrora". 

Teremos um outro movimento como o Barroco, o Cubismo ou o Renascentismo?

Que outros filmes recentes você consegue se lembrar que se tornaram tão referenciais quanto um "Ben-Hur" ou "O Poderoso Chefão"? Por que as grandes obras atuais da sétima arte fogem da busca pela originalidade e se afundam em referências, sempre regurgitando o passado? (Vide um poço delas, chamado Quentin Tarantino...).

E as músicas? Pop, sertanejo e funk descartáveis? Serão tocadas novamente daqui a dez, vinte ou cinquenta anos? Ou isso continuará sendo um mérito de gente como Elvis Presley, Chico Buarque, Roberto Carlos, Beatles, ou até o mais recente Michael Jackson?




Filmes como "Ben Hur" (1958) e "O Poderoso Chefão" (1972) - imagens acima - sobrevivem à prova do tempo, e se tornaram referências culturais permanentes

Tudo isso passa a ser um mero sinal de que a nossa vida moderna escorre por entre os dedos, e nos escapa. 

Gostamos de tudo, e ao mesmo tempo não gostamos de nada. Odiamos diversas coisas, e ao mesmo tempo, não odiamos nada. Não há como se afixar a coisa alguma. Pois se antes, o binômio "espaço-tempo" progredia de uma forma ascendente do espaço em relação ao tempo, agora se inverteu: é o tempo que se projeta numa relação ascendente em relação ao espaço.

E então você me pergunta: "Ok! Mas se Bauman falava que agora é assim, fazer o que?".

Bem, sempre há algo a se fazer.

Bauman era um legítimo representante da sociologia humanística - e como tal, expunha as suas ideias como uma forma de crítica ao fim do ser humano como vítima de suas próprias artimanhas. Sobretudo, tecnológicas. A proposição de suas teorias nos convida a refletir sobre as nossas próprias possibilidades de contemplação da realidade, e mudanças internas e externas. 

E se por acaso, fizéssemos um exercício diário de reflexão das nossas prioridades existenciais? 

Passar a trabalhar nossos egos, para discernir o que realmente deve vir e ir, ser volátil e inconstante ao léu do tempo, e por outro lado, o que deve ser forte e presente, sólido e rígido em nossas consciências, atos e costumes, de forma a sempre nos agregar mais e nos tirar menos.

Para muitos, existe uma verdade insofismável, principalmente para os não partidários das crenças post mortem: de que a vida é muito curta, e o ser humano, afinal, nunca estará definitivamente preparado para o momento final. Diante disso, é inevitável que aproveitemos melhor nossos momentos neste plano terrestre.

Você já parou para refletir o que, em sua vida, é realmente descartável?

E o que deve ser perene, e fixo? Mantido como imprescindível?

Faça uma análise. Não custa tentar.

sábado, 22 de junho de 2019

O FUTURO DA ESCOLA É...


Se humanizar. Cada vez mais e sempre. E todo tanto que você pensar, ainda é pouco.

Esses dias, durante o período de festas juninas, fui buscar o meu filho na escola. Cheguei um pouco antes do horário, e me pus a esperar a saída dele sentado em um dos bancos, imerso nos meus pensamentos de preocupação e ansiedade com tantas coisas, como sempre. Quando, repentinamente, uma das supervisoras apareceu na minha frente e me entregou um saquinho de pipoca. Sem nada dizer. Com um sorriso. E saiu. 

Aquela simples atitude, inesperada, me causou uma sensação... Posso dizer que, em coisa de segundos, eu voltei a ser um menino no pátio de todas as escolas onde já estudei, revisitando a magia de tempos passados. Devo ter ficado com a maior cara de bobo, viajando no tempo com aquele saquinho de pipoca na mão (rsrs)! Mas me senti muito bem, e essa sensação me levou à epifania de observar, como há muito tempo eu não fazia, que estar em uma escola, e vivenciar a experiência do aprender, com pessoas que se importam com você, é extremamente especial e edificante na vida de um ser humano.

Escola boa é escola acolhedora. Que consegue fazer a gente se sentir querido. 

Há muitos anos atrás, quando eu ouvia de alguns bons diretores que escola deve ser como o segundo lar da gente, eu confesso que não entendia muito o real sentido dessa expressão. Hoje, eu a entendo plenamente.

Tudo isso, afinal, para dizer que a escola, se quiser continuar existindo e sendo escola, deve cada vez mais ir de encontro àquilo que é o seu verdadeiro diferencial: a capacidade de se comunicar afetivamente com seres humanos, e nesse processo, conduzir à formação de seres humanos cidadãos. Plenos em seus direitos e deveres. Cientes de sua importância e de seu lugar na sociedade.

É muito fácil o acesso à informação hoje em dia. A garotada está aí, solta e embevecida com tanta tecnologia, e dados fluindo pra lá e pra cá. É clichê consolidado que não há como o professor competir com tudo isso - tolice pensar que pode. 

Isso quer dizer que ele deve desistir, largar de tudo, se abster de preparar bem as suas aulas e todo o conteúdo da maneira mais interessante que puder? Não!!! Absolutamente não. Mas, deve se ater ao fato de que isso por si só, hoje em dia, não irá prender a atenção dos seus alunos.

O professor pode (e deve) dar ao aluno aquilo que ele não encontra em tantos likes, dislikes, memes e views por aí: o contato com a realidade, pele e osso, através do diálogo e da atenção. O "saber se preocupar" com o aluno e sua realidade (muitas vezes, psicológica e socialmente claudicante) deveria se tornar o maior atributo a ser exigido de um profissional de sala de aula, no momento de sua contratação ou efetivação. Mas, há de se convir, é algo que não se pode cobrar, pois não é técnico. É da pessoa. É humano.

Em tempos de banalização do ofício de ensinar, pairam em algumas cabeças governistas até mesmo as velhas teorias absurdas e confrontadoras da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, do home schooling, ou ensino domiciliar (pais ou responsáveis se responsabilizariam pelo ensino dos filhos em casa) - teses tão made in USA quanto as séries que assistimos na Netflix ou HBO, ou seja, bonitas e bem produzidas, mas bem distantes da nossa realidade brasileira! 

Observamos que, se de um lado o Poder Público pensa tão somente em números, e em como desonerar um investimento tão importante como o da Educação, de outro lado, o professor e a escola, enquanto instituições democráticas e sociais, são muito importantes sim, e precisam continuar na ativa - para dar ao aluno todas as chances que ele merece, de socialização, culturalização e erudição.

Cabe aos educadores portanto, nesse momento crítico, assumirem de vez um papel que, talvez, seja o mais transgressor que o ensino brasileiro precise praticar: a tarefa de interventores da realidade social. A consciência de que, apenas se aproximando mais dos seus alunos, através da percepção de suas mazelas, da preocupação e do contato humano, é que conseguirão salvar um navio que muitos já dão como afundado. Mas não é. Muitos mares há ainda para singrar.

O papel transformador da educação em nossa sociedade torna-se, pois, este. Porque são as armas de que o docente ainda dispõe, e que não estão disponíveis para outros usarem e tomarem o seu lugar. Nem a internet, com a barreira da tela e sua distância, que a energia elétrica, o sinal lógico e a virtualidade impõem. E nem os pais do ensino domiciliar, que obviamente não tem como se dedicar tanto assim ao ensino, em um país onde quanto mais você trabalha, mais dinheiro você gasta pagando impostos, e menos tempo tem para ficar com os filhos...

É sempre interessante analisar as contradições.

Recentemente, participei de um processo seletivo para um cargo de chefia no órgão do Estado de Minas Gerais, em que sou funcionário (setor público da Educação, já há 12 anos). Sou da área administrativa, não pertenço a quadros de docência. E apesar de gostar muito do que faço, durante todo o percurso desse processo, bem como ao longo de minha carreira no setor, se tornou inevitável observar como as ambições, decepções, vaidades e amarguras humanas inflamam o dia-a-dia desse ambiente. Algo muito natural, aliás, e que não é só na minha área - acontece em qualquer outro ambiente profissional e administrativo, especialmente no das grandes empresas. 

Mas não deixa de ser interessante comparar, como o nosso meio é frio e repleto de difíceis convivências, ao passo que o ambiente das escolas que monitoramos (digo, o trabalho com os alunos) é caloroso e mais afetuoso. Duas alas do serviço educacional, tão distintas! Fico pensando se certos professores, já tão acostumados com a empatia lúdica de se relacionar com uma classe, se sentiriam bem da mesma forma, em um trabalho técnico.

Em minha atividade profissional, sou conhecido como um cara da tecnologia. Sempre recorrem a mim em termos de como resolver problemas relacionados a aplicativos, dispositivos, sistemas... E durante certa época, fui bastante enfático, nos cursos e capacitações que dei para vários professores, sobre o uso e a importância das ferramentas tecnológicas para a melhoria do ensino em nossas escolas.

Mas vejo que a gente tem que rever os paradigmas. Acho que mudei.

São apenas ferramentas! O dom de fazer a coisa acontecer não mora ali, está em outro lugar.

Se me perguntassem hoje, qual é a palavra-chave para descrever o que é preponderante para que o processo de ensino de nossos jovens funcione definitivamente, em qualquer escola de nosso país, de qualquer modalidade ou categoria, seja numa metrópole ou nos mais recônditos rincões, do Oiapoque ao Chuí, da mais portentosa à mais humilde... eu não mais responderia "tecnologia".

Eu diria: "amor".

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Gostaria de aproveitar este espaço da postagem e fazer aqui uma honrosa menção a Giselle, Crístia e Meire Menezes (foto abaixo, esquerda para direita), e toda a sua maravilhosa e esforçada equipe do COLÉGIO MENEZES, de Ituiutaba-MG. Escola dos meus filhos, que põe em prática, sempre com excelentes resultados, todo esse amor e dedicação aos quais me referi nas linhas acima... Obrigado pelo empenho de vocês, pessoal! Os rostinhos de vocês estarão insculpidos no futuro sucesso e na trajetória profissional de todos os nossos jovens que passaram (e passarão) por aí... ❤




terça-feira, 28 de maio de 2019

BUNDY, EFRON E O LADO ESCURO DA LUA


Existe uma região obscura e lúgubre na alma de cada ser humano, que esconde coisas recônditas que nem as mais soturnas trevas podem malevolamente conjurar.

A esse lugar tétrico onde repousam os demônios do subconsciente de cada um, o grupo de rock britânico Pink Floyd deu o nome, há 46 anos atrás, de "o lado negro da lua", em forma de arte conceitual e musical - The Dark Side of the Moon, o lendário álbum de 1973, com a capa de luz prismática atravessando uma pirâmide existencial, permanece imponente como uma das mais poderosas obras-primas já gravadas na história da humanidade, a retratar o lento e gradual descompasso de um ser humano, rumo à desestruturação psicológica, a psicopatia e a demência.

As suas letras sensíveis e repletas de alegorias sobre a loucura, unidas a uma performance instrumental vigorosa e que representava o ápice do Floyd como conjunto progressivo, fizeram do disco um estrondoso sucesso.

Campeão de vendas absoluto nos anos 70. Marco irrefutável na carreira da banda.

Roger Waters, o mentor intelectual e principal compositor do grupo, sabia do que estava falando naqueles sons: era um cara que conviveu com neuroses e traumas da Segunda Guerra Mundial desde moleque (perdeu seu pai para o conflito), e presenciara dia após dia a queda do seu amigo Syd Barret, o membro fundador, se deteriorando mentalmente com um vício pesadíssimo em LSD, ao ponto de ficar incomunicável - sim, a liderança do Pink Floyd sobrou para Waters ainda em 1968, após a figura do brilhante Barret ter se reduzido a um apelido triste no passado do conjunto, crazy diamond ("diamante louco").
Roger Waters, baixista e líder do Pink Floyd

Corte para 1974.

Em Utah, EUA, o terror começa a se espalhar de forma crescente, com as notícias cada vez mais aterradoras, na mídia, de jovens mulheres que aparecem mortas com sinais de horripilante barbárie, estupradas e desfiguradas. 

Melissa Smith, 17 anos, fora encontrada com o crânio totalmente despedaçado, e marcas brutais de espancamento por todo o seu corpo.

Joni Lenz, 18, encontrada toda ensanguentada na cama do apartamento que dividia com suas amigas, tinha marcas de violência por todo o corpo, e o pior... um pedaço de cano de metal, arrancado de sua própria cama, introduzido na vagina.

Laura Aime, 17, fora encontrada praticamente sem arcada dentária, a mandíbula toda fragmentada e destruída, e seu corpo, assim como o de tantas outras vítimas, apresentava terríveis vestígios de espancamento e sodomia. Uma barra de ferro havia sido provavelmente utilizada para quebrar quase todos os seus ossos.

A esses, se seguiriam muitos outros casos, e em outros estados da Federação também: Colorado, Flórida.

Em todas as tenebrosas ocorrências, a violência sexual bestial, que parecia produzida por alguém animalesco, demente e sem qualquer traço de humanidade, se dava antes... ou até mesmo depois das mortes, indicando também uma doentia predileção pela necrofilia.
Uma extensa listinha de algumas das vítimas de Ted Bundy...

Logo, as peças do quebra-cabeças persistentemente montado pelos policiais começam a se encaixar. O suspeito logo se mostraria um cidadão acima de qualquer suspeita. Um rapaz culto, inteligente e atraente. Formado em Psicologia com excelentes notas, agora ele tentava a sua segunda graduação, em Direito, visando seguir a carreira dos seus sonhos: advogado. Fora filiado influente do Partido Republicano, com excelentes contatos no ambiente político/universitário local. 

Em suas insuspeitas investidas noturnas para saciar a sua obsessão oculta, costumava utilizar gesso em um de seus braços ou pernas para fingir que era um frágil rapaz universitário fraturado, humildemente pedindo ajuda a alguma garota, que lhe chamasse a atenção, para carregar seus livros para o carro. Ele era simpático e gentil. Seu sorriso era cativante. Era virtualmente impossível alguma delas dizer 'não' para ele.

Seu nome era Theodore Robert Bundy.
Um dos maiores maníacos da história - Ted Bundy (1946 - 1989)

Maio de 2019...

O drama de suspense Extremely Wicked, Shockingly Evil and Vile, estreia na Netflix norte-americana. Ainda não há título em português ou uma data específica para estrear na Netflix brasileira, mas deve estar próxima. 

O filme figura o primeiro grande papel adulto do ex-ídolo teenager Zac Efron (High School Musical, da Disney), no papel de Ted Bundy, um dos mais monstruosos e míticos assassinos seriais da história dos Estados Unidos da América.
O Sheldon, convertido em promotor de acusação, resolve largar um pouco de lado as teorias do Big Bang, para acusar Zac 'Bundy' Efron, no filminho novo da Netflix

Apesar de soar superficial em relação aos mais de 30 homicídios brutais cometidos por Bundy, e se ater demasiadamente em sua relação com a primeira esposa, Elizabeth Kloepfer, o filme apresenta uma atuação competente e elogiada de Efron como o serial killer, e dá uma noção aproximada do que foi a trajetória do psicopata.
Zac Efron largou de cantar e dar piruetinha no ar pra ficar bem parecido com Bundy

Mas para quem quiser conhecer em detalhes minuciosos a criminosa e impressionante carreira de Bundy, na real mesmo, nada como assistir na íntegra à mini-série Conversations with a Killer: The Ted Bundy Tapes, também na Netflix, e já disponível há uns 3 meses na brasileira.

É de arrepiar todos os fios do corpo ouvir o próprio Bundy contar, com sua voz calma e gélida, sobre os detalhes de todos os seus assassinatos, em fitas de entrevistas originalmente concebidas pelo jornalista Stephen Michaud, e gravadas por Bundy na prisão, com o intuito de escrever um livro sobre ele. 

Aos poucos, notamos que Bundy não era apenas um sujeito cativante e carismático, com um Q.I. provavelmente acima da média. Ele era, também, o primeiro mega star do crime que se aproveitou do apetite da mídia sensacionalista para se promover, e representou a quintessência do serial killer moderno, calculista e assustador. 

O cara era ainda tão mala, que fez questão de brigar com todos os seus advogados, e atuar em defesa própria, nos tribunais por onde passou...

O verdadeiro "lado escuro da lua" em qualquer pessoa por aí.

Quando ele diz aquela sua clássica frase: "Nós, serial killers, somos qualquer um. Somos seus filhos, seus maridos, estamos em toda a parte. E haverá mais de suas crianças mortas amanhã"... a gente pensa, cara, danou-se. Ele simplesmente escrachou com tudo. 

E ao dizer isso, acabou dando um amargo grito de vitória e um alerta rumoroso, na cara da sociedade inteira, que vai muito além de seu corpo frito na cadeira elétrica à qual foi sentenciado - Bundy foi executado em 24 de janeiro de 1989, após seu julgamento no Condado da Flórida. 

Burn, Bundy, Burn! - "queime, Bundy, queime", gritava a multidão de frente para o Presídio de Starke na Flórida, na madrugada do dia de sua execução, ávida pela morte daquele cara que se tornara um dos inimigos públicos n.º 1 da América.

E o Pink Floyd de Waters, naquela canção Brain Damage ("Dano cerebral"), já prenunciava:

sábado, 25 de maio de 2019

MITOMANIA: um mal psicológico perigoso e crescente


Semana passada, ocorreu em New York o julgamento de Anna Sorokin, uma jovem russa de apenas 28 anos que, desde 2016, quando se mudou para os EUA após deixar sua família na Alemanha (morava lá desde os 16 anos de idade), construiu uma das mais notáveis carreiras criminosas como estelionatária na América. 

A jornada de Anna como "171" - gíria brasileira que designa essa galera que dá golpe, falsifica e mente para obter vantagens financeiras e pessoais - era de alto refinamento. Se dizendo herdeira de uma aristocrática família germânica, ela passou a utilizar o falso nome de Anna Delvey e, com muita inteligência e perspicácia, conseguiu se aproximar das pessoas certas, nos momentos certos, fazendo amizade com a alta elite nova-iorquina devido aos seus extensos conhecimentos sobre o mundo das galerias de arte chiques na Europa e EUA.

Anna se dizia herdeira de uma fortuna de mais de 60 milhões de euros (cerca de R$ 261 milhões), e passou a morar em hotéis cinco estrelas, frequentar festas exclusivas da grã-finagem, e viajar em jatos privados dos amigos. Tornou-se figurinha tarimbada e cheia de curtidas milionárias no Instagram, onde também deixou registradas as suas marcas de pseudo riqueza. 
Anna lacrando o Insta...

Além disso, como forma de realçar a ostentação, gostava de distribuir altas gorjetas aonde quer que fosse.

Detalhe: é filha de uma família humilde na Alemanha, e seu pai é um simples caminhoneiro. Eles ainda não entendem o que deu errado na criação de Anna para ela aprontar tudo isso.

A casa começou a cair em 2018, quando apareceram as primeiras queixas de rombos e prejuízos de hotéis e restaurantes caríssimos da cidade. De alguns, ela simplesmente consumia e se ausentava sem pagar a conta, para nunca mais aparecer. Dar o cano na hora de pagar era o seu modus operandi padrão. Alguns bancos de New York também começaram a oferecer representação contra Anna, visto que ela se utilizava de um esquema bastante facilitado pelo crédito fácil de certas instituições financeiras: fazia depósitos de cheques sem fundo de alto valor nas contas, e antes que o banco se desse conta de que o cheque era "borrachudo" (lá não fazem primeiro a conferência), ela sacava grande parte do valor do mesmo em dinheiro. 

Em suma, uma perfeita pilantrinha.


O interessante é que a história de Anna esbarra em outras de famosos falsários, pessoas com um elevado grau de inteligência, que se faziam passar por aquilo que não eram - é o caso do célebre Frank Abagnale Jr., cuja vida virou filme pelas mãos de Steven Spielberg (Prenda-me Se For Capaz, 2002, com Leonardo DiCaprio no papel), e até mesmo do brasileiro Marcelo Nascimento, que se fez passar por herdeiro do dono da empresa aérea Gol, e enganou o high society e até mesmo equipes de TV. Sua trajetória também foi para as telonas, encarnado pelo ator Wagner Moura no sucesso de bilheteria VIPs, de 2011.

Mas o que intriga mesmo no caso de Anna e todos esses outros, é um traço comum presente na personalidade deles: a ocorrência da mitomania.

Essa disfunção psicológica, já classicamente diagnosticada, é a compulsão do indivíduo por mentir, de forma a melhorar a sua autoestima, produzir sensações de prazer pessoal, e adquirir vantagens pessoais e profissionais, podendo chegar a condições tão agudas, que o paciente acometido por esse mal pode até mesmo confundir aquilo que ele inventa com a própria realidade. 

É o famoso "mentir tão bem, que se acredita na própria mentira".


Dois sucessos do cinema que retratam figuras mitômanas: "Prenda-me Se for Capaz" (Catch me If You Can, 2002), e "VIPs" (2011)

Em todos os seus mais diversos tipos, o "mitômano" é alguém que se satisfaz enganando os outros, tentando projetar externamente uma realidade paralela produzida pela sua própria imaginação fértil, e assim como na psicopatia, sem se preocupar com as consequências geradas a partir disso. 

Até mesmo a mais completa ausência de remorso é um traço bastante comum entre mitômanos e psicopatas - durante seu julgamento, conforme pode ser visto nas reportagens pela TV ou vídeos no YouTube, Anna se portava de maneira displicente, leviana, como se nada de errado tivesse acontecido, e apesar de no final da audiência ter expressado pedidos de desculpa pelo que fez, admitiu que não se arrependera "tanto assim" dos seus atos.

A mitomania é, portanto, patologia de natureza psiquiátrica, séria e comprometedora: o mitômano pode causar enormes danos às vidas de outrem e de si mesmo, pois em diversos momentos não tem a capacidade de distinguir entre uma imagem que cria de si mesmo, de uma que apresente o que realmente é. E nesse processo disfuncional perceptivo, causa engodo a todos aqueles que o cercam, ocasionando prejuízos financeiros, éticos, morais, e que podem gerar até mesmo situações de violência e agressividade. Não é preciso ir muito além para dizer que o mitômano acaba colocando a sua própria vida em risco, dependendo da pessoa para quem ele mente.

Ao ser detectada, deve ser buscado, urgentemente, auxílio médico profissional para lidar com o problema - há tratamento para isso.

Nesses tempos de dubiedade moral em que vivemos, em que toda uma nova geração de indivíduos se embevece ao postar fotos em redes sociais, criar mitos virtuais sobre suas experiências e personalidades, e invariavelmente se deixar atrair pela ostentação e pelos sedutores números de curtidas e de seguidores, nunca é demais ficar de olho em nossos mais diversos contatos, para checar se ninguém está sofrendo desse mal...