sábado, 30 de março de 2019

ESPERANDO PARA VOAR... (E a Borboleta de Ferro)

Eu e meu caçula, Denio Alves Filho, numa das melhores viagens de nossas vidas

“Dê asas à sua imaginação”
(Provérbio tradicional de estimulação à criatividade das pessoas)

“Red Bull te dá asas!”
(Slogan publicitário utilizado pela marca de energéticos ‘Red Bull’ em suas propagandas)

“Vocês humanos parecem cultuar tudo que voa”
(Frase dita pela personagem de Sarah Douglas, a vilã kriptoniana Ursa, em trecho do filme ‘Superman 2’ – 1981)


Poucas coisas inspiram tanto o ser humano quanto o desejo de voar.

Do antigo mito grego de Ícaro, que queria voar até o sol e acabou queimando as suas asas, até as mais contemporâneas agruras dos ingleses irmãos Wright e do nosso Santos Dumont, para inventar um meio de transporte que plainasse sobre as nuvens (polêmica sobre a criação do avião que teima em reacender opiniões até hoje), o ato de conseguir se locomover nas alturas sempre fascinou sobremaneira a humanidade.

Engraçado. No meu último voo, há alguns dias atrás, ocorreram alguns revezes que atrasaram a viagem de ida a São Paulo, onde iria participar da festa de aniversário de minha sobrinha. E calhou de eu conhecer um piloto de jatos particulares, um senhor já experiente, com mais de 20.000 horas de voo e passagem por companhias aéreas famosas (e já extintas), como Transbrasil e Vasp. 

Cara com uma carreira e tanto.

Mediante os problemas que estávamos encontrando para embarcar, ele veio com essa: “É o que eu sempre digo, o avião continua sendo o meio de transporte mais rápido... para quem não tem pressa.”

Dei boas gargalhadas diante de tão mordaz comentário.

OK, uma vez que você consiga estar lá dentro e afivelar teu cinto, beleza – é noventa e nove por cento que um trajeto de maneira confortável e segura irá ocorrer. O problema é chegar lá dentro.

Ainda há um considerável despreparo de certos profissionais e agências para garantir ao consumidor que horários sejam confirmados e garantidos, e obviamente a infraestrutura e (falta de) profissionalismo de alguns aeroportos nacionais influem bastante nisso.
Você já tinha visto uma cena dessas? - uma escada de embarque derrubada pela força do vento!

Avião é muito rápido, e contrariando o sentimento popular comum, estatisticamente continua sendo o meio mais seguro de viajar. Observe o tanto de checagens e testes de segurança que são feitos nas aeronaves – muito mais do que em veículos que trafegam por terra e água. O controle de tráfego aéreo ainda é uma coisa formidável, do qual os outros meios de transporte deviam tirar alguns exemplos para evitar lamentáveis acidentes por aí, principalmente envolvendo veículos comerciais e de grande porte, como caminhões e carretas (alô, alô transportadoras).

As quedas que ocorrem, vez ou outra, viram combustível para a imprensa que tende a ampliar o alarde de tudo, sempre faminta de manchetes. Mas basta olhar estatisticamente, para ver que as estradas ainda matam muito mais gente do que as vias aéreas.

O Brasil continua sendo um país muito ruim de aviação, tanto no quesito infraestrutura quanto companhias de voo. 

Tinha que oferecer mais e melhores serviços, com mais companhias, mais aeroportos, mais oferta – competitividade alimenta qualitativamente a demanda, e temos ainda uma quantidade de voos comerciais pequena, em relação a outros países.
Já melhorou muito. De dez anos para cá, o brasileiro anda conseguindo bem mais viajar de avião, graças a pacotes e promoções exclusivas de empresas como Latam, Gol, Azul e outras. Mas dá para melhorar mais, muito mais.

Portanto, se você já voou, ótimo. Voe mais, é muito bom. Procure ofertas, dê preferência aos pacotes promocionais em sites, e evite as rodovias, que já andam lotadas e estressantes. A aviação comercial brasileira precisa continuar trabalhando e sendo estimulada para crescer mais. Nessa ocasião que comentei no início deste texto, foi a primeira vez que meu filho voou - e foi um prazer inenarrável estar junto com o garotinho nesse momento tão legal!

Mas tocando no tema ‘voar’, logo depois que voltei para casa fui matar a saudade de um som que já não ouvia fazia tempo, e especialmente ligado a coisas aladas, visto que eu ainda estava com as nuvens na cabeça (ou seria a cabeça nas nuvens?). 
Um som de rock pesado mas viajante ao mesmo tempo, realmente capaz de fazer a mente voar!

Não... errou quem pensou em Led Zeppelin - sabe da piadinha envolvendo a criação do nome do grupo? Algo pesado mas capaz de subir aos céus, um ‘zepelim de chumbo’?
O Iron Butterfly - da esquerda para a direita: Doug Ingle, Lee Dorman, Ron Bushy, e Erik Brann

Na verdade, estou me referindo ao Iron Butterfly (ou seja, “borboleta de ferro”), banda icônica do final dos anos 60, que iniciou junto com outros dois grupos americanos da época (Vanilla Fudge e Steppenwolf) o lance de misturar o combo guitarra/baixo/órgão/bateria de uma forma bem densa e agressiva, assim dando início a uma das sonoridades mais clássicas dos primórdios do hard rock.

Gente como Deep Purple, Uriah Heep e outros seguiriam essa vertente com discos de bastante sucesso logo depois, cada um conseguindo a seu modo resultados diversos...

O Butterfly, assim como o Led Zeppelin (que ainda surgiria uns dois anos depois) também moldava as suas músicas de uma forma que ficassem pesadas, mas capazes de ir aos céus, de tanta altura – o grupo chegou a ser catalogado uma vez no Guiness Book, o célebre livro dos recordes, como o que tocava mais alto em concertos e festivais, no período 1968-1970, devido ao potentíssimo equipamento de som que possuíam para apresentações ao vivo. A única banda que conseguiria fazer frente a eles, alguns anos depois, seria o Pink Floyd.

Contribuíam para o seu peso com nuanças psicodélicas os integrantes Lee Dorman (baixista), Ron Buschy (baterista), Erik Brann (guitarrista – entrou para a banda com apenas 17 anos, um prodígio!), e o líder Doug Ingle (teclados e vocais).

A banda ficou famosíssima devido a uma das primeiras faixas extensas do rock (ocupava um lado inteiro do vinil original), uma ousadia na época em que canções pop de até 3-4 minutos ainda ditavam as regras nas rádios, e isso demonstrava a força criativa e progressiva de novos tempos que estavam chegando: "In-A-Gadda-Da-Vida", música intensa e de levada hipnótica e insana, esbanjava poder em todos os seus gloriosos 17 minutos de duração.

Na verdade, tratava-se de uma jam em estúdio, uma improvisação dos quatro músicos em torno de um pequeno tema principal e sombrio de Ingle, que satirizava ritmicamente variações em torno das trilhas sonoras de filmes de terror 'B', dos estúdios Hammer, Vincent Price, Boris Karloff e galeria ltda., tão em voga nos anos 60. A formação calcada em música clássica do tecladista o deixava confortável para explorar aquelas notas obscuras, que davam um tom tenebroso à canção.

Enquanto letra, "In-A-Gadda" era ridícula. Mas talvez fosse nessa simplicidade que residia toda a sua força - o interessante não era o que era cantado, mas sim a longa viagem instrumental que a precedia:

"In a gadda da vida, honey
Don't you know that I'm lovin' you
In a gadda da vida, baby
Don't you know that I'll always be true
Oh, won't you come with me
And take my hand
Oh, won't you come with me
And walk this land
Please take my hand"

(In a gadda da vida, querida
Você não sabe que estou apaixonado por você?
In a gadda da vida, benzinho
Você não sabe que serei sempre sincero?

Oh, não queres vir comigo
E pegar na minha mão 
Oh, não queres vir comigo
E caminhar por essa terra
Por favor, pegue minha mão)
In-A-Gadda-Da-Vida - Iron Butterfly

Muito já se especulou a respeito da origem do intraduzível termo "in a gadda da vida".

Falou-se até que teria surgido de uma visita dos integrantes da banda ao Brasil em 1967, quando teriam frequentado alguns bordéis do Rio de Janeiro e, já encharcados de bebida e rindo com a mulherada, tentavam pronunciar uma expressão em português que haviam aprendido: "na gandaia da vida".

Kkkkkk... Pura lenda. Fake news - isso não aconteceu.

Na verdade, Doug Ingle e Lee Dorman estavam meio travados mesmo nas primeiras tentativas de ensaiar a música, mas a ideia original era de que se chamasse In the Garden of Eden - ou seja, "no jardim do Eden". 

Como o produtor que acompanhava as sessões achou engraçado eles bêbados e murmurando a frase de uma forma totalmente grogue, ele rabiscou na lata da fita de gravação do estúdio: in-a-gadda-da-vida. E assim ficou. Os músicos do grupo gostaram da sonoridade estranha do nome, e resolveram deixar.

O álbum contendo a faixa, homônimo, saiu em 14 de junho de 1968, e arrebentou nas vendas, devido justamente à loucura da longa música, que rompeu barreiras culturais e se tornou fundo musical obrigatório para hippies californianos enquanto estavam nas tribos "dando um beque".

Também tornou-se mitologia pop o uso desse som pelos radialistas da época que pegavam o duro horário da madrugada, em que era preciso ficar pondo uma música atrás da outra enquanto não rolavam os comerciais. Com a comprida "In-A-Gadda..." ocupando o espaço radiofônico de umas 3 ou 4 músicas de uma vez, dava tempo tranquilo de locutores e DJs irem ao banheiro passar aquele fax, enquanto a música tocava para ouvintes notívagos e insones, rsrs.

Um fato lamentável - e tão comum também a várias outras bandas daqueles tempos - é que eles logo descobririam que ficaram prisioneiros desse único hit: nos shows, o público só pedia e queria ouvir "In-A-Gadda", e o desinteresse por outras composições da banda era gritante. Ao ponto de vaiarem a execução de algumas outras músicas.

Uma pena, e uma comprovação letal de que o público daqueles tempos também não era tão mais inteligente ou sofisticado do que as audiências atuais - o trabalho que o Iron Butterfly continuou realizando depois desse disco é muito bom, e possui sonoridades muito interessantes! Sem dúvida, um grupo que precisa ser redescoberto pelas novas gerações, e ganhar um merecido reconhecimento.

Como exemplo, deixo aqui para apreciação algumas músicas do disco Ball, o seguinte deles, de 1969, e gravado ainda com a mesma formação do In-A-Gadda (pois logo depois eles trocariam de integrantes).
In the Times of Our Lives - Iron Butterfly

A sonzeira aterradora e gótica ainda está ali, com músicas como "Filled With Fear" e "In the
Times of Our Lives". O grupo arrisca algumas mudanças de rumo mais melódicas, com a baladinha "Lonely Boy" e as burlescas "Her Favorite Style" e "In the Crowds".
Filled with Fear - Iron Butterfly

As músicas são mais curtas e diretas, e indicavam novos caminhos para o grupo - que, infelizmente, não teve mais o sucesso merecido para se desenvolver, e passaria por sucessivas trocas de formação até encerrar atividades, em 1974.
Lonely Boy - Iron Butterfly


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(Texto escrito ao som da belíssima “Expecting to Fly”, música de 1967 do grupo Buffalo Springfield – ouça no link abaixo)

terça-feira, 12 de março de 2019

CADA ÉPOCA TEM O VAMPIRO QUE MERECE

O ator inglês Gary Oldman, na já clássica caracterização de 'Drácula - de Bram Stoker', do diretor Francis Ford Coppola (1992)

A figura do hematófago mais célebre da história da humanidade é coberta por uma aura de misticismo e fascinação que envolve as suas histórias.

O vampiro é, por excelência, o monstro mais representado na cultura popular de todos os tempos. Provavelmente, o mais adorado também.

Misto de humano e morcego, ele foi visto pela primeira vez na forma de um sorumbático conde, recluso num castelo da longínqua Transilvânia, no mítico romance do irlandês Bram Stoker, publicado pela primeira vez em 1897, Drácula.

Para criar a figura do mais famoso vampiro de todos os tempos - aquele que daria início a um filão milionário, tanto nas páginas de livros quanto nas telas de cinema - Stoker teria buscado inspiração nas histórias acerca do lendário príncipe romeno Vlad Tepes, que no século XV defendeu a região em que vivia da invasão do império turco otomano, e se notabilizou por utilizar o cruel método da empalação em suas vítimas. 

Apesar de não existirem registros de que Vlad ingerisse o sangue daqueles que matava, a sua crueldade e profunda falta de compaixão pela raça humana fizeram dele um homem temido e odiado, que os aldeões da época juravam ter feito alguma espécie de pacto com o demônio - ele chegava a ter prazer em montar banquetes e comer diante de corpos empalados ou decepados, jorrando sangue! 
Representação gráfica do príncipe Vlad Tepes, que inspirou o vampiro Drácula - ao fundo, os corpos empalados pelo carrasco

Isso deu a ele o apelido Draculea ("filho de Dracul"), visto que seu pai também era um guerreiro sanguinário, que havia recebido a alcunha Dracul, uma expressão vulgar dos camponeses da época que significava, justamente, "demônio". Historiadores creem que, a partir daí, teriam se originado todos os mitos que davam conta de que Vlad e sua família tinham parte com o coisa ruim, e poderiam até mesmo se alimentar de sangue.

O romance de Stoker, por sua vez, foi lançado na Inglaterra do final do século XIX, uma época em que o Reino Unido passava por um período turbulento de crises sociais, em que as cidades tentavam se adaptar ao advento da Revolução Industrial, com uma grande massa populacional abandonando o campo e indo trabalhar, sofrer e morrer nos lúgubres bairros de uma Londres imunda e violenta. 

Nesse sentido, Drácula foi o livro certo, na hora certa - o clima gótico na descrição do castelo do conde e dos becos escuros de Londres, mais a sensação claustrofóbica sugerida pela paixão proibida de um morto-vivo por sangue humano, sobretudo extraído através de mordidas no pescoço de mulheres (o que lhe conferia certa sensualidade), geravam uma fábula niilista dos novos tempos, em que o leitor oprimido pela realidade  depressiva, terminava por se identificar com a esquizofrenia do protagonista: Drácula é inicialmente visto como um anfitrião de bons modos, quase que um perfeito lorde vitoriano, mas aos poucos revela a sua personalidade decadente e pervertida.

Algumas décadas adiante, com o sucesso de uma nova forma de expressão artística denominada cinema, a "sétima arte", logo grandes obras da literatura seriam buscadas e adaptadas para a realização de filmes, e a história do conde sanguessuga foi uma delas.
Cartaz original do clássico 'Drácula', de 1931

Em 1931, com o húngaro Bela Lugosi no papel do vampiro, Drácula, do diretor Todd Browning, se tornou um dos primeiros grandes sucessos do cinema de horror, reproduzindo em imagens a trama do livro, com algumas pequenas diferenças. 

Em muito ajudava a forte expressão facial de Lugosi na caracterização do monstro. Pálido e introduzindo em seu rosto olhares de ódio e angústia que reproduziam perfeitamente a psique do vampiro, o ator ficou para sempre marcado pelo personagem, e nunca mais conseguiu papéis de êxito fora de tal interpretação, sendo obrigado a repetir sua atuação em filmes posteriores.
Bela Lugosi, como o Conde Drácula: o ator nunca mais conseguiria se livrar da personagem


Com a chegada dos anos 1950-1960, o mundo vivia uma atmosfera de repressão e moralismo, atiçada pelo confronto ideológico da Guerra Fria, que tomou o globo no período pós-Segunda Guerra Mundial.

O mais simples embate entre comunistas e capitalistas era capaz de gerar um patrulhamento ferrenho acerca de preceitos comportamentais. Quem era mais "certinho" e dentro dos padrões, era de direita. E quem era mais liberal e contrário a certas convenções, era de esquerda.

Na trilha de toda a onda contracultural que dominaria as artes a partir desse período, os criativos cineastas dos filmes 'B' (de baixo orçamento) de uma certa produtora de filmes britânica chamada Hammer Productions lançaram, em 1958, uma nova versão de Dracula, com o soturno inglês Christopher Lee revivendo magistralmente a figura do vampiro. O papel caiu como uma luva para o corpo esguio, a voz grave e o olhar tétrico de Lee, sendo que a nova encarnação do conde criou fôlego para mais uma série de bem sucedidas continuações.
Christoher Lee, no papel do vampirão

De certa forma, Drácula assumia um tom anárquico para as novas gerações. Ter uma atitude 'vampiresca', de repente, se tornou hype - ser vampiro, para toda uma galera rebelde que curtia o então nascente rock and roll, era como ser um outsider, gostar de curtir e viver a noite, e não querer enfrentar os alhos e água benta dos Van Helsings de plantão, sendo esse um modo de estabelecer uma nova postura diante da sociedade careta e conservadora da época. 

A partir de novos paradigmas ditados pelas mudanças de valores e costumes da década de 60, a figura do Conde Drácula poderia até mesmo assumir um papel sexualmente liberal, consolidando de vez aquilo que, no romance de Bram Stoker, era apenas sugerido: a predileção do vampiro por belas jugulares femininas - dando preferência, inclusive, a mulheres noivas ou casadas (Lucy e Mina, do livro original).


A partir daí, é que começa uma reviravolta na imagem da criatura. E os vampiros passam a ter um maior enfoque de erotismo e sensualidade no seu ataque às vítimas.

 
Isso passaria a ser explorado ad nauseam pela literatura e cinema contemporâneos.

São exemplos nítidos disso: a comédia escrachada de vanguarda do diretor Roman Polanski, A Dança dos Vampiros (1967), o vampiro erótico encarnado por David Niven em Vampira (1974), o arremedo em forma de sátira disco desempenhado por George Hamilton  em Amor à Primeira Mordida (1978), ou o extremamente galante e sedutor Frank Langella na readaptação de Dracula, do diretor americano John Badham (1979). Também bebe fartamente nessa fonte o vampiro playboy e yuppie vivido por Chris Sarandon, na primeira versão de A Hora do Espanto, que fez muito sucesso nos cinemas em 1985.




 Três momentos célebres e distintos dos vampiros no cinema: a paródia de 'Dança dos Vampiros', de Roman Polanski (1967), o Drácula galã interpretado por Frank Langella em 1979, e Chris Sarandon como o jovem vampiro playboy, em 'A Hora do Espanto' (1985).

Não podemos deixar de lembrar o aprofundamento psicológico que o personagem sofre, também nas mãos de autores e diretores mais existencialistas, que investigam a fundo as neuroses e ânsias de um ser condenado a viver eternamente em busca de sangue.

Faz parte dessa proposta a refilmagem feita por Werner Herzog de Nosferatu - O Vampiro da Noite, em 1979, de um clássico alemão de mesmo nome realizado por Friedrich Wilhelm Murnau em 1922, e que nada mais era do que uma adaptação do Drácula de Bram Stoker - só que mudando o nome de quase todos os personagens e da criatura para "Nosferatu", pela ausência de pagamento de direitos autorais para a família do escritor.

O que as duas versões tem em comum é o profundo sentimento de vazio e desespero social que assolava a Alemanha em ambas as épocas - em 1922, era uma nação destruída e tentando se reerguer nos escombros da Primeira Guerra Mundial, e no remake de 1979, era um país que já tinha passado pela avalanche da dominação ideológica nazista, e atravessava ainda um forte período de economia recessiva, devido à crise do petróleo.
Nosferatu (1979), de Werner Herzog

Todo esse clima é traduzido nas imagens góticas e aterradoras dos ataques do vampiro a suas vítimas. Nosferatu reflete a própria sensação de frieza, terror e incerteza que a Alemanha vivia, em tão atribulados dias.

De qualquer forma, na sua releitura do mito de Drácula, o vampiro Nosferatu revela também a face mais obscura da agonia do ser, com suas longas garras demoníacas e uma feiura horrenda e esbranquiçada no rosto carrancudo, refletindo a impossibilidade de tomar para si uma mulher que pertence ao mundo dos vivos, ainda que perdidamente apaixonado por ela. A representação cadavérica e angustiada do vampiro Nosferatu o retira da zona de conforto do charme e da sensualidade, e o aproxima muito mais da figura diabólica da insatisfação, da inveja e do desejo, como peças propulsoras de um mal absoluto - o que foi bastante realçado na versão de Herzog em 1979, com a brilhante interpretação de Klaus Kinski como o vampiro.

Inesquecível também é aquela que tentou ser a mais fiel adaptação para os cinemas do romance de Bram Stoker - inclusive fazendo questão de carregar o nome do autor no título, Drácula - de Bram Stoker, de 1992, do cultuado diretor Francis Ford Coppola (O Poderoso Chefão, Apocalypse Now), traz um aristocrático Gary Oldman no papel do vampiro, e apesar dos maneirismos de arrojo visual e narrativo típicos de Coppola - que acabou inevitavelmente acrescentando o seu toque à história - consegue reproduzir escrupulosamente em detalhes todas as nuances do livro, inclusive utilizando o seu formato epistolar (a narrativa original dos personagens se dá através de cartas).

Mas então chegamos ao início do século XXI, e as lendas vampirescas tomam uma outra proporção, mais adequada às novas gerações que consomem cultura pop adolescente, e compram boxes pela Amazon e Walmart: a coleção de livros da saga Crepúsculo, de autoria da escritora Stephenie Meyer, bate recordes colossais de vendas, e tem seus direitos vendidos para uma adaptação cinematográfica em 2008 que, por sua vez, também deixa plateias do mundo inteiro hipnotizadas pela história de amor teen vivida por Isabella Swan e o vampiro Edward Cullen.

Aqui, o mito maligno é totalmente convertido em um ser carismático, capaz de se apaixonar e se oferecer para sacrifícios pelos humanos, e até mesmo formar uma família, obedecendo a um padrão moral rígido e condizente com os sonhos românticos de jovens do mundo inteiro, que chegaram a estragar a tinta da parede de seus quartos, de tanto colar pôsteres do Robert Pattinson - que apesar de desempenhar o vampiro mais fresco da história do cinema, e hoje em dia nem querer se lembrar disso, foi alçado ao estrelato justamente por esse papel...

No Brasil dos anos 2016-2018, em plena efervescência dos memes e da cultura do bafafá nas redes sociais, com suas loucuras, brigas políticas e fake news, ainda fomos apresentados a um senhor pra lá de vampiresco, que não estrelou filmes e nem protagonizou livros (apesar de já ter escrito alguns), mas que calhou de ser o nosso Presidente da República com o maior índice de rejeição popular até hoje - eis que, das acusações do deputado evangélico Cabo Daciolo sobre pactos satânicos, e teorias da conspiração que o demonizaram, surge Michel Temer, o vice de Dilma Roussef que assume o posto após o impeachment dela (e também é acusado de trairagem). 

Sem dúvida, o político com mais cara de hematófago que o nosso país já produziu até hoje...

Em toda essa extensa época de turbulências morais e sociais, parece que a única certeza que resta de tantas reviravoltas recentes no poder, é a de que os verdadeiros vampiros de nossa realidade são os que sugam cada gota do sangue de esperança da população, saqueando sem dó os cofres públicos abarrotados do nosso suado dinheiro de impostos.



Como podemos perceber, cada época tem o vampiro que merece.

sexta-feira, 1 de março de 2019

QUANDO O 'SENHOR DOS ANÉIS' ENCONTRA OS BEATLES...


Se você, assim como eu, não é lá muito de samba e carnaval, apesar da festa de Rei Momo que se aproxima, e também é fã da maior banda de rock de todos os tempos, então sente só essa novidade.

A notícia deixou muita gente de cabelo em pé, assim que foi divulgada por representantes da Apple Corporation - a empresa montada por eles e que cuida dos lançamentos de seus produtos até hoje.

Em 30 de janeiro passado, pleno aniversário de 50 anos da última apresentação dos Beatles juntos - aquele famoso show de improviso de 35 minutinhos, perpetrado por eles em 1969, no terraço do prédio da empresa em pleno horário de almoço em Londres - foi anunciado que o célebre diretor do clássico e oscarizado Senhor dos Anéis, o cineasta e produtor Peter Jackson, vai tomar conta, a partir de agora, desse que é um dos últimos e mais contraditórios legados deixados pelo grupo: os registros e filmagens daquele que seria um dos últimos álbuns deles, Let it Be.

Antes de mais nada, para quem não conhece a história deste que seria um dos derradeiros projetos dos Beatles, é preciso dizer que ele já começou errático, em janeiro de 1969.

Inicialmente, se chamaria Get Back ("Volte"), nome de uma das canções inicialmente compostas por Paul McCartney como uma homenagem ao passado do grupo, e para reanimá-los para uma série de apresentações ao vivo (já não tocavam em público há 3 anos). O pacote seria composto de um disco com canções inéditas e alguns covers de outros artistas, admirados por eles no início de sua carreira, mais um especial de TV que deveria cobrir o retorno do grupo aos palcos - de onde haviam sumido desde a grande estafa das turnês que tiveram em 1966.
Capa do que deveria ter sido o disco original, concebido como "Get Back"

Mas o clima de fim de festa que empurrava o grupo para o seu fim já era nítido: John Lennon cada vez mais envolvido com ideias artísticas e revolucionárias com a sua nova esposa, a artista plástica japonesa Yoko Ono, George Harrison desinteressado por não ter suas composições levadas a sério pela banda e querendo ir tocar com outros artistas e partir pra carreira solo, e um Ringo Starr enfastiado e entediado com as discussões dos outros integrantes, e sentindo uma grande aptidão por seguir carreira como ator de cinema. 

Restava a Paul a árdua tarefa de assumir o leme como líder do grupo (posto que anos antes era John), e tentar reagrupá-los, para reacender o interesse de continuarem juntos.

Algumas vezes, entretanto, suas ideias para criar novamente um clima de colaboração e criatividade entre os Beatles davam só o efeito contrário.

Em uma das primeiras reuniões para discutir sobre o projeto do disco e filme, assim que levantou a bandeira a respeito dos novos shows, Paul propôs que seus colegas dessem ideias dos lugares onde poderiam voltar a tocar juntos - ao que um frio e amargo John sugeriu: "Num sanatório. Isso é uma ideia louca e idiota, então podemos ir tocar lá!"

A partir disso, dá pra sacar que não foi fácil manter os quatro tocando e desenvolvendo ideias para essa empreitada. Mas eles foram seguindo, aos trancos e barrancos - e aos poucos, com a ajuda de amigos músicos (incluindo a participação do tecladista Billy Preston), e o pessoal da gravadora, o projeto foi tomando forma - agora rebatizado de "Let it Be", nome de uma nova e melancólica composição de Paul, um belíssimo tema ao piano falando sobre esperança e resignação, que acabou conquistando os Beatles e os reunindo para trabalharem de forma coesa em torno de uma música novamente.

Tecnicamente falando, o projeto Let it Be também enfrentou diversos problemas.

Primeiro, o cineasta contratado para cuidar das filmagens de todos os ensaios do grupo para o disco e show, o famoso documentarista Michael Lindsay-Hogg, recebeu uma ordem expressa de um cada vez mais neurótico Paul: ele devia filmar exatamente TUDO que eles fizessem no estúdio! Cada pio, assobio, ou até mesmo um arroto deles entre um e outro gole de chá deveria ser registrado, passando a ideia de aproximação dos fãs com a intimidade e o cotidiano do grupo o máximo possível. Obviamente que o introvertido George Harrison, e o excêntrico e genioso John Lennon, foram os que inicialmente mais se sentiram ultrajados com o lance...

Na ânsia de filmar tudo que pudesse, simultaneamente em vários momentos e sem perder nada, Lindsay-Hogg acabou preparando um cenário irregular de câmeras e equipamentos de filmagem, que muitas vezes não ficavam com o foco corretamente ajustado para pegar todas as cenas, ou sem bons registros sonoros, o que gerou diversos takes sem o tratamento adequado. 

O primeiro local escolhido para as filmagens dos ensaios, o Twickenham Studios, um velho galpão utilizado por equipes de TV e cinema em Londres, era gélido e desconfortável, possuía uma acústica horrível para os padrões dos Beatles, e acabou também dando uma tremenda dor de cabeça na montagem dos sistemas de som e luz. Em questão de duas semanas, o grupo e as equipes de filmagem e gravação voltariam para o habitat natural da banda: os estúdios da Apple-EMI, onde regularmente ensaiavam e gravavam seus discos.

Foi ali que eles decidiram, num belo dia frio e cinzento, tipicamente londrino, subirem no topo do prédio da Apple e ali realizar seu último show, para ser incluído no filme - uma ideia bastante prática e inusitada, já que ninguém conseguia chegar a um consenso sobre locais para voltarem a tocar, num momento lendário posteriormente imitado por diversos artistas em "shows surpresa" ao redor do mundo, e que se tornou folcloricamente conhecido como The Beatles Rooftop Concert ("o concerto dos Beatles no terraço").



O lendário concerto em cima do telhado

Apesar de todos os percalços, as sessões acabaram gerando uma extensa coleção de gravações de áudio e vídeo de qualidade bastante variável em todo o projeto, mas que foram todas mantidas e guardadas para posterior seleção pelo diretor e banda. Foram juntadas mais de 55 horas de material inédito, naquele que o foi o mais bem documentado trabalho realizado pelos Beatles, em sua carreira.

Ao final de todo um período de 4 exaustivos meses, os Beatles demonstraram insatisfação com o material produzido e resolveram engavetá-lo - mas um ano depois, já durante o período de separação deles, Lindsay-Hogg conseguiu a permissão da banda para fazer uma compilação daquilo que ele considerava melhor, e lançá-la na forma do documentário Let it Be (mesmo nome do disco), que se tornou notório como o último filme dos Beatles, e que registra a gravação do que seria seu último álbum, póstumo.

Ainda que com qualidade de filmagem e som irregulares, devido aos fatores aqui já comentados, acabou ganhando o Oscar de melhor filme musical de 1970.

Agora, saber que o genial Peter Jackson vai reaver o projeto, e restaurá-lo com a qualidade técnica superior à qual ele já é habituado em seus filmes de sucesso, é uma notícia danada de boa!

A empresa de Jackson, a neozelandesa WingNut Films, criou recentemente um incrível documentário com imagens digitalmente restauradas sobre a Primeira Guerra Mundial, They Shall Not Gow Old, e já anunciou que vai utilizar todas as técnicas possíveis de recuperação e melhoria de imagem e som também no material dos Beatles.

A intenção é oferecer ao público um espetáculo bem próximo da ideia original de Paul, que era colocar os fãs o mais próximo possível deles nos estúdios, de forma realista, como se fossem "moscas na parede", observando tudo.

E certamente, agora, será com uma qualidade excepcional.

Junto com o trabalho de restauração do cineasta, será relançado também o filme original  Let it Be, digitalizado e remasterizado da mesma forma por Jackson e sua equipe - ou seja, numa versão melhorada nunca antes vista pelos fãs da banda.

A previsão de chegada às telas desse sensacional trabalho, para os amantes da boa música e admiradores dos eternos garotos de Liverpool, é para maio de 2020!

Aguardemos.

Até lá, curta aí um dos grandes lances desse momento lendário do grupo: "Don't Let Me Down", em performance única registrada no concerto do terraço.