quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

FUTILIDADE E VULGARIDADE NAS REDES SOCIAIS


Nos últimos dias, um jovem casal de atores de uma famosa emissora de televisão teve um problema conjugal e doméstico devassado pelo aparelho midiático da fofoca, com o uso intenso do rastilho de pólvora das redes sociais.

O caso é, em sua essência, um dilema particular e delicado, que deveria envolver tão somente as partes envolvidas, no íntimo de seus relacionamentos.

Mas, por se tratarem de pessoas públicas, com um elevado grau de exposição na mídia, a coisa tomou rumos totalmente inesperados, e se tornou um verdadeiro espetáculo de dimensões ampliadas, no grande circo das tristes fogueiras da vaidade e inveja humanas.

A imprensa marrom quer simplesmente fazer dinheiro com a desgraça alheia. Sempre foi assim.

O que é simplesmente inacreditável é a própria passividade com que as figuras no processo todo aceitam o que está acontecendo. Gente, isso é danos morais!

Existem situações que são da alçada da vida particular dos indivíduos - e devem ser tratadas como tal. Mas o uso constante e desmedido de redes sociais tem apagado essa percepção e sensibilidade do que é "foro íntimo", nos dias que seguem.

E aí tudo vira um tremendo caldeirão de briga e fofoca, que fica difícil de contornar.

Se tem político por aí utilizando a torto e a direito redes sociais para fazer propaganda e "bravataiada", e gerando até crise governamental com isso, ok. Problema deles, isso é uma coisa. Mas problema particular, lances dos relacionamentos das pessoas? Isso é outra, totalmente diferente.

Whatsapp, Facebook e Twitter parecem ter se tornado uma extensão natural da maldosa língua humana.

E a sanha em espalhar intrigas, inverdades (as já célebres fake news) e bochichos nessas redes já se tornou fato corriqueiro. 

Faz tempo já que eu apaguei minha conta do Facebook, com seus inbox de cobra peçonhenta e congêneres, porque não aguentava mais tanta baboseira, tantas fotos, vídeos e comentários com baixaria, e não sinto falta nenhuma disso! Instagram e Twitter? Uso só um pouquinho, quase nada, e olha lá. Melhor também manter a distância, em certas situações.

Ando igualando rede social a bebida - para as duas, vale a máxima: "use com moderação".

As pessoas estão perdendo o senso da realidade ao transferirem para as redes sociais comportamentos horrorosos e ocultos de suas personalidades.

Conheço muita gente que já foi (e ainda é) vítima de calúnia e difamação no meio digital. Muitos ainda serão. Tenho uma estimativa de que, daqui até 2022, mais de 3,8 bilhões de pessoas serão vítimas de crimes eletrônicos contra a honra também - ou seja, praticamente metade da população mundial.

O que dificulta muito a penalização de tais ilícitos, em nosso Brasilzão, ainda é a morosidade e a extrema dificuldade de se modernizar os processos de imputação a tais ofensas.

Para se ter uma ideia, numa ação de danos morais, ainda demora cerca de 30 dias (no mínimo) para conseguir uma liminar no Poder Judiciário contra qualquer operadora no país, para quebra do sigilo de dados. Isso quer dizer que, pra identificar o IP (endereço de rede) do computador ou celular de onde saiu a ofensa a outrem, ainda é osso. Nesse ínterim, já deu tempo do fulano sumir com o equipamento que utilizou, destruir a rede do lugar onde estava disparando veneno, e até se pirulitar pra China se quiser!

Se a coisa então foi feita com uma maior elaboração, utilizando redes mascaradas ou com recursos da deep web, aí lascou mesmo, pode desistir. 

A Polícia Federal continua sendo o único órgão com a expertise pra lidar com isso - portanto, se a ofensa contra a tua honra não se caracterizar criminalmente como tendo atravessado fronteiras estaduais, esquece.

Nesse palco tenebroso de uma terra cibernética e meio sem lei em que nos encontramos, seja o mais "santinho" que puder - seja lá o que isso ainda signifique.

Mesmo assim, é perigoso ainda falarem de você, por estar se recusando a entrar na dança.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

O REI DO ROCK - E DAS ARMAS


Não é novidade para ninguém que armas de fogo são parte inseparável da cultura norte-americana.

Assim como Elvis Presley - o mítico "Rei do Rock" - também está intrinsecamente ligado aos simbolismos do país de Tio Sam.

E os dois - Elvis e armas - eram inevitavelmente interligados. Ainda mais por isso convir a um garoto pobre e caipira do Mississippi, vindo de família paupérrima, com o dom magistral de possuir uma voz de ouro, muito versátil para o mercado fonográfico jovem de sua época, mas totalmente despreparado para os percalços da absurda fama e fortuna que ele viria a ter.

Elvis é um grandes paradigmas da música pop, o Midas que personificou todo o calvário de alguém que sai de baixo e chega ao topo, eternizando um estilo e uma forma própria de cantar, que fizeram dele uma lenda que já vendeu muito mais discos morto, do que vivo!

O espólio do rei é caríssimo, ele continua sendo um dos artistas mais lucrativos da história.

Mesmo na era digital, em que o grande público perdeu o costume de "comprar disco" (adeus vinil, adeus CD!), e tudo é praticamente através de serviços de vídeo e streaming pela internet (Spotify, YouTube, Deezer), Elvis vai bem, obrigado, e continua sendo um excelente vendedor de MP3. Só para se ter uma ideia, a postagem do espetáculo de TV original de 1968, Elvis Comeback Special, onde ele cantou grandes sucessos como "If I Can Dream" e "Memories", já teve mais de 1 milhão e seiscentas mil visualizações em apenas 5 meses.

A se julgar por um artista falecido no longínquo agosto de 1977, nada mal.
 
Além das sempre presentes teorias conspiratórias em torno do "Elvis não morreu", de que teria tudo sido uma farsa bolada pelo rei para escapar da fama e viver tranquilo e anônimo em algum lugar, há também uma aura praticamente santificada em volta da imagem do ídolo, por seus fãs: alguns gringos loucos volta e meia cogitam abrir uma igreja em seu nome, a Presleyterian Church of Elvis the Divine (ou "Igreja Presleyteriana de Elvis, o Divino", kkkkk)... o que, obviamente, leva muita gente com a cabeça mais no lugar a querer rir de um disparate desses.

Coisa de fã. Alias, fanático - que sempre pensa que seus ídolos podem ser imagens da perfeição na Terra, e seres humanos fora do comum e acima da média, de tão bons.

Mas, indo na contramão dessa ideia, uma olhada mais pormenorizada nas inúmeras biografias do rei nos mostram que ele não era, ao contrário do que muitos pensam, tão gente fina assim (e sem trocadilhos com a gritante obesidade de seus últimos meses vivo, por favor!).
Elvis e suas queridinhas: não as fãs, mas as armas!

Elvis, a partir de determinado momento de sua carreira, era um cara angustiado, depressivo e obcecado, com ataques de superioridade resultantes de um processo de autodefesa gerado por um ego terrivelmente abalado pela sua baixa auto estima sofrida na infância, e negativamente estimulado por um enorme cordão de puxa-sacos que passaram a viver como sanguessugas de seu sucesso: o empresário Tom Parker e os assessores de Elvis, conhecidos como "Máfia de Memphis".

Isso fez dele um cara envolto em vários comportamentos agressivos ao longo de sua vida.

A amargura temperada com egolatria excessiva, e confeitada por muitos dólares, provocaram alguns lances bizarros na história do rei: além de ter ficado vidrado em artes marciais a certa altura da sua vida, descendo o sopapo no primeiro coitado que estivesse pela frente, Elvis também desenvolveu um gosto maníaco por armas. E por andar sempre armado.

Todos sabem que isso, aliado ao fato de se tornar um contumaz usuário de drogas de farmácia - estimulantes e tranquilizantes - que fazem do humor da pessoa uma verdadeira montanha russa (e isso era o que rolava com Elvis), pode levar a episódios perigosíssimos.


No livro Elvis - What Happened? ("Elvis - O que Aconteceu?"), de Steve Dunleavy, uma das primeiras biografias lançadas sobre o cantor, é relatada uma ocasião em que Elvis ficou irritado com o desdém de dois funcionários de um posto de gasolina, onde ele e alguns dos seus comparsas pararam a limusine para abastecer.

Era 1965, e o rei estava em um período mais em baixa de sua carreira, sem conseguir lançar nenhum grande sucesso, e preso a uma série de contratos intermináveis com estúdios de cinema para fazer um filme após o outro. Acontece que eram filmes chatos, com roteiros chatos, comediazinhas musicais que atiravam Elvis em uma rotina estressante, e acabavam minando o ânimo e a criatividade do cantor para voltar a lançar hits. Tudo culpa do seu empresário mala, Coronel Tom Parker. Graças a ele, Elvis se sentia sendo morto aos poucos por Hollywood.
Elvis, durante determinado momento de sua carreira, ficou preso a contratos para filmes maçantes, no estilo "seresteiro havaiano romântico da sessão da tarde"

No tal posto de gasolina, então, Elvis vê os dois frentistas brincando de boxear e se lixando para ele, dando pouca ou nenhuma atenção, quando resolve pregar um sermão sobre "paz e amor" a eles. Ele vinha carregando constantemente livros sobre filosofia oriental e budista em suas viagens, como uma forma de amenizar o tédio e as tensões dos horários apertados das filmagens, e andava simplesmente fascinado pelas palavras de gurus como Paramahansa Yogananda. 

Então, o rei tentou chamar a atenção dos caras do posto com seu discurso. Mas os dois jovens rapazes pareciam fazer de conta que nem estavam diante daquela lenda - logo ele, o "rei do rock"! 

Apenas aquela indiferença já fora o suficiente para deixar Elvis meio puto. O rei aos poucos percebia que estava ficando velho, e para as novas gerações a sua relevância parecia não ser mais a mesma.

Mas quando ele entrou dentro do carro e saiu, e enxergou pelo espelho retrovisor os frentistas rindo um para o outro, fazendo gozação dele, e um deles ainda levantando o "dedinho" na direção do carro do rei, aí a coisa azedou.

Elvis estava dirigindo. Num instante só, deu um cavalo de pau, o pneu cantou bonito, e voltou com tudo pro posto de gasolina. 

Ele saiu tão rápido da limusine que, num pulo só, derrubou um dos frentistas com uma voadora certeira. No outro, aplicou um potente golpe de caratê que jogou o fulano no chão, e rapidamente sacou um Python 38 carregada no talo. Apontou na direção do último cara que derrubara e já ia atirar quando, num átimo de segundo, Hamburger James, um dos assessores da Máfia de Memphis, veio correndo e conseguiu tomar o revólver das mãos do rei.

- Elvis, pelo amor de Deus, cara! Não!!! Imagina se isso vai parar na mídia, a sujeira que vai ser... Você é o rei do rock, cara! O rei! Não um assassino. Pensa na tua família, no quanto isso vai feder... 

A consciência pesou, Elvis deu as costas e se dirigiu para o carro, e resmungou para seus assessores rapidamente pedirem desculpas aos frentistas, perguntarem se eles estavam bem, e dar uma "molhadinha" básica de alguns dólares neles, para esquecerem daquele ocorrido e tocarem normalmente suas vidas.

Outros episódios tristemente famosos na vida do rei, em sua ânsia para puxar o gatilho, dão conta de sua lendária mania de dar tiros em aparelhos de TV, ao exibirem programas dos quais ele não estava gostando.
TV vitimada por Elvis Presley em um dos seus ataques de fúria, ainda hoje em exposição em sua mansão hoje transformada em museu - Graceland, em Memphis

Um grogue e enfastiado Elvis Presley acertou televisores duas vezes, em 1972 e 1973, com sua Derringer automática de estimação - que, pelas suas pequenas dimensões, era fácil de portar e disparar - e isso ocorreu por conta de uma apresentação do cantor Mel Torme, que ele detestava, e outra por conta de fofocas a respeito de sua pessoa, no programa de Robert Goulet.

Consta que na primeira vez, aliás, o projétil atravessou o aparelho, e foi se alojar num dos cômodos da mansão Graceland onde estava a sua então esposa Priscilla Presley, quase a acertando também. Se não morreu de bala, por pouco não morreu de susto. Imagina o que aconteceu com o casamento dos dois, que já estava bem abalado, depois de uma situação como essa...

Também tem destaque nas biografias do rei o ocorrido após a sua ruidosa união com a bela modelo Linda Thompson - a primeira mulher com quem Elvis manteve um longo relacionamento, de 1972 a 1975, depois de se separar de Priscilla Presley.

Quando se conheceram, o rei a presenteou com um carro esportivo que era uma das sensações da época, o célebre DeTomaso Pantera - feito por encomenda para o mercado americano pela montadora italiana DeTomaso, tinha um robusto motor de Ford V8, 5 marchas e 265 cavalos, e competia com feras como Ferrari e Lamborghini.

Assim que o automóvel foi entregue em sua mansão Graceland, Elvis chamou Linda correndo para lhe entregar o seu presente - praticamente, uma declaração de noivado. 

Apesar (ou por causa) de toda a empolgação do momento, ao receber as chaves toda trêmula e embasbacada de emoção, a moça não conseguiu dar partida no carro. Ele afogava, e não ligava. Alguns dos malas da Máfia de Memphis, já antevendo o nervosismo do patrão, começaram a dar os pitacos esperados: "ah, deve ser a bateria, chefe", "vamos dar uma empurradinha, que pega!".

Elvis, já soltando fumaça pelas ventas, cata a chave das mãos de Linda:

- Que merda de bateria o que!!! Um carro novinho desses? Paguei uma fortuna por essa porcaria...

Aí a coisa desandou, porque o carro não pegava nem nas mãos do rei do rock.

A certa altura, então, Elvis perdeu a paciência, se levantou do carro e, instintivamente, sacou de uma Walther PPK modelo automática, outra de suas pistolas preferidas que ele sempre carregava.

Foram 3 disparos: um pegou na porta do motorista, e os outros dois no volante do carro, um de raspão e o outro em cheio.

- DeTomaso de merda! Desgraçado! Eu devia saber que esses carros italianos são só propaganda, é tudo uma bosta mesmo! Vem, Linda, vamos sair e dar uma agitada... depois eu dou um outro pra você...
Elvis saindo para um rolezinho no DeTomaso Pantera

Assim que a tempestade passou, poeira assentada, um dos assessores de Elvis se senta no carro que tinha ficado largado no pátio da mansão - e, após algumas tentativas, consegue dar partida nele. Eram pitorescas as histórias de carros importados da Itália que, por algum probleminha durante a viagem de traslado, mostravam depois pequenas falhas de mau contato na bateria. Nada que um pequeno ajuste não resolvesse...

Elvis deu um Cadillac conversível para Linda, e ainda ficou com o DeTomaso em sua garagem por algum tempo, utilizando o mesmo para passeios esporádicos, antes de vendê-lo para um colecionador particular, que até hoje o mantém exposto em um museu de Los Angeles. Mas, detalhe: o rei nunca mandou consertar ou remover as balas dos tiros que ele deu no carro, visto que isso não atrapalhou o seu funcionamento. Parecia, de alguma forma, ter fascínio pelo próprio temperamento explosivo e excêntrico que tanto o dominava, em certos momentos.

O DeTomaso Pantera amarelo de Elvis teve apenas a lataria da porta arrumada pelo seu novo dono. 

As marcas dos projéteis no volante ainda continuam lá, até hoje, fazendo parte da mitologia ensandecida do rei do rock... e das armas.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

O FIM (DE MIM) - NOVA PROGRAMAÇÃO MENTAL


- Apague. - eu disse - Apague tudo e implante novamente.

A assistente técnica da Recondução Social, departamento da grande empresa responsável pelas recargas de personalidade, uma senhora loira de seus 60 e poucos anos, maquiagem um pouco excessiva e sorriso amável, me olhou fixamente.

- Você... tem certeza que não quer? Não quer mais ser como era? Nada? Não está mais satisfeito com o que foi até hoje?

- Não. Nada. - respondi secamente.

- Mas você sabe que nenhum ser humano é perpetuamente satisfeito, e que por nossa própria natureza fatidicamente errante somos protótipos fadados a falhar ou nos decepcionar em qualquer momento, apesar de conseguirmos ter elevado ao máximo os nossos níveis de consciência emotiva e percepção com a adoção das recargas, desde 2057, não é? - ela argumentou.

- Sim, senhora. Eu sei.

- Olha, você me desculpe eu estar conversando assim com você, mesmo após você já ter passado por toda a anamnese inicial e o estágio de preenchimento dos formulários, mas... você sabe como são essas coisas, né. A burocracia. Eu... estou apenas cumprindo o meu papel. Eu recebo por isso.

E ela se aproximou um pouquinho mais de mim, sussurrando ao lado do meu ouvido direito:

- Somos vigiados aqui.

- Eu entendo. Sem problemas. - respondi.

Provavelmente, ela tinha conseguido regular para um volume mais baixo os campos de captação sonora dos chips em nossos corpos e em todo o ambiente do departamento, com algum daqueles bloqueadores de tecnologia extraterrestre contrabandeados da Área 51, depois que ela foi sucateada.

Por isso, imaginei que ela conseguia falar mais baixinho comigo daquele jeito sem ser descoberta.

- Bom... vamos lá, então. Hora de preparar o ambiente.

Ela me conduziu até uma sala branca com uma cadeira azul reclinável, parecida com aquelas de dentista - só que para a pessoa se deitar de bruços, e sem camisa.

Assim que eu me encostei lá, a técnica já foi colando todos aqueles fios transmissores em mim, desde a base do meu crânio (na nuca), até a curvatura final lombar, na altura das últimas vértebras antes de minhas calças.

Eu estava sendo conectado ao servidor das recargas.

Todos os transmissores tinham que estar estrategicamente posicionados. Uma falha boba qualquer poderia ser fatal na comunicação de todo o sistema neural que irradiava do meu cérebro até a coluna, medula, e dali, se ramificando, para todos os meus órgãos e membros.

Pois eu estava prestes a me tornar um novo homem. Mais uma vez. 

- Você tem certeza que é esse perfil pré-determinado que você deseja? - ela me perguntou, já notando que era, em certos aspectos, radicalmente diferente do meu atual.

Eu apenas balancei afirmativamente a cabeça. 

Já estava cansado até do meu tom de voz, do jeito que eu estava sendo. Estava cansado de tudo. Da família que eu tivera até ali, do trabalho, das amizades, de todo o círculo de relacionamentos em volta de mim, e da forma como eu me comportava diante de tudo em minha existência.

No novo ser que, em poucos instantes eu me tornaria, já estava previsto pelo contrato da empresa que, dali em diante, em nada mais eu teria obrigações com o meu 'eu' anterior, ficando todas as questões inclusas nos encargos administrativo e jurídico deles, que eu já havia pago, para que fossem resolvidas. E logo eu teria uma nova identidade, uma nova bagagem intelectual e emocional para lidar com uma nova carreira, um outro lugar para ir morar, e um outro estilo de vida, e em mais nada eu iria ser ou parecer com o que era até agora.

Até outras memórias eu poderia ter! Caso pagasse as taxas adicionais, obviamente.

Essas coisas são caras. E já era a terceira vez que eu recorria à recarga. E a última, esperava eu.

Mas é um dos prazeres do mundo moderno. E acessível para quem pode dispor de um considerável valor financeiro para ter uma nova chance. Uma nova vida.

Graças a essa tecnologia disponível, podemos nos tornar outras pessoas.

- Me desculpe a indiscrição. Eu... sei que sou chata com alguns clientes, e um dia desses até fui advertida sobre isso. Mas é porque já presenciei várias recargas que deram errado. Crises de existência regressa. Desejos de um passado sobreposto, deletado. E... por isso eu pergunto várias vezes para todos que vem aqui, se eles realmente desejam a mudança. A recarga

Ela falava isso para mim, já percebendo certa impaciência de minha parte, enquanto ajustava o último fio, bem na região central do meu cerebelo.

- Eu notei que o senhor escolheu o perfil mais impulsivo de nosso banco de dados. O mais agressivo. Imagino que algo o feriu muito nessa vida que o senhor está prestes a deixar.

Já não era permitido a mim mexer mais nada em meu corpo a não ser a boca, principalmente porque em alguns minutos eu teria que morder uma placa protetora de silicone, para evitar o forte ranger de dentes durante a descarga expansiva de energia que o choque da recarga produzia. Contratualmente, eu tinha que me manter paralisado, para que nenhum daqueles fios saísse do lugar, ou eu mesmo seria o responsável legal por colocar tudo a perder em minha recarga de personalidade.

E depois a empresa poderia me jogar em algum manicômio por aí.

Mas, mesmo sem mexer a cabeça um centímetro sequer, consegui dizer para aquela senhora, em sóbrio e bom tom:

- A imaginação de uma pessoa é uma dádiva divina, derivada de uma grande inteligência. Admiro a senhora por sua percepção aguçada.

Pude ouvi-la dando uma leve risadinha.

Ela foi até o console, ajustou alguns níveis no painel de controle, e pegou a placa protetora de silicone para a boca. Foi se aproximando de mim.

Assim que ela se agachou diante de mim para colocar a placa em minha boca, ela mais uma vez me fitou com aqueles olhares piedosos - grandes olhos azuis e atenciosos.

- Receio que, na tua próxima personalidade, o senhor não tenha a "dádiva divina" de me dar uma resposta como essa. Com esse humor, esse charme e ironia. Isso exige uma vivência, uma tolerância... estão se tornando raras em nosso tempo personalidades desse jeito. Isso são coisas que algumas pessoas talvez não valorizem, mas outras sim.  


Ela rapidamente enfiou a placa em minha boca. Quase que com certa raiva. 

Então se levantou e me encarou pela última vez, antes de ir para o painel de controle para ativar o processo.

- O senhor é muito inteligente também. Ou era, a partir de agora. Sabe de uma coisa? O grande sucesso de nossa empresa não está na vontade das pessoas mudarem totalmente quem elas são. Está na insatisfação delas por não terem encontrado as pessoas certas.

Pronto. Ela ATIVOU O LED 'START' DO PAINEL. O processo vai começar.

"Pense firme numa coisa pela qual você se manteria vivo, pra valer. Uma coisa pela qual você se agarraria no fio da vida, por mais tênue que ele estivesse. Isso é para garantir, caso algo comece a dar errado durante a transmissão de sua nova personalidade, que possamos voltar atrás. Por alguns segundos. E te manter vivo!"

Os riscos envolvidos em tudo.

Bombardeado por aquelas descargas que extraíam quem eu fora, para por outro no lugar.

O corpo estremecia, estremecia... A temperatura subindo, altíssima. Dor.

E no meio de tudo, ela.

Sim, eu a via.

Eu via, afinal, o sorriso lindo que ainda me mantinha ali, quem eu era. Quem eu estava deixando de ser.

Eu via, nos últimos momentos, o sorriso lindo de Helena.

"Mas depois que a luz do painel piscar ao máximo, solte. Esqueça. Deixe ir. E se deixe levar, se abandone. Fique o mais leve possível. Aí já não será mais preciso - e nem será mais possível - voltar a ser o que você era."

Tudo se apagou. E então, clareou novamente, num átimo de segundo.

Eu me via agora em uma casa branca, tudo branco, um ambiente totalmente alvo e vazio.

Estava num ambiente que parecia uma grande sala ou copa, com várias portas e um longo  corredor que levava a outras portas do que deveriam ser quartos.

Havia uma porta aberta, de saída para um vasto deserto. De imensidão incalculável, da qual não dava para se ver mais nada ao longe. Parecia que eu estava no meio do nada.

Resolvi entrar pelo corredor, para ver o que encontrava.

Fui andando, olhando as portas fechadas em cada lado do corredor. Elas eram de formatos um pouco diferentes umas das outras, de maçanetas e desenhos na madeira diferentes. 

De repente, me aproximei de uma do lado esquerdo, que chamou a minha atenção. Ela tinha algumas rachaduras, e parecia ser mais rústica e envelhecida, com um formato de maçaneta aparentemente pesado e com certa ferrugem.

Fiquei mais curioso com ela, em relação às outras.

Me atrevi a tocá-la. E passar a mão em sua maçaneta para tentar abri-la. 

Não estava trancada. Abri.

Um grande clarão se apossou de mim, ofuscando a minha visão. E então, assim que consegui abrir os olhos novamente, eu estava de volta à sala de controle da recarga de personalidade.

A senhora que conduzira o processo estava terminando de retirar os fios transmissores de mim. Logo ela me ajudou a levantar da cadeira, e já foi perguntando o meu nome para se certificar de que eu era quem eu havia escolhido ser.

Sim, tudo havia dado certo. 

Diante do toque das mãos dela, ajudando a me erguer para que eu ficasse em pé, comecei então a perceber como os tratamentos de estética de nossa época fazem com que essas mulheres mais velhas fiquem muito mais atraentes do que as novas.

Instantaneamente, veio aos meus pensamentos a vontade de possuí-la. 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

A GUERRA... EM SONS QUE ENTRARAM PRA HISTÓRIA


A fúria da guerra. E a fúria do rock.


Sempre acompanhou o instinto humano uma natural tendência dos seres para exercerem sobre outrem o poder de suas vontades, e matando se for preciso. Ganância, dinheiro e dominação: os germes do ego que sempre contaminaram as grandes relações político-sociais de nossa História foram responsáveis por processos de destruição em massa que, a pretexto de tomar território para monopolizar, terminaram por invariavelmente promover a riqueza de uns em detrimento da morte e desgraça de tantos outros, bem como um imoral controle demográfico.

Por outro lado, o som rítmico alucinante e por vezes distorcido, gerado pelo casamento de guitarras, baixo, bateria e vozes rasgadas e desafiadoras, ofereceu cama confortável para que fossem entoados versos denunciantes dessa nua e crua verdade existencial: o homem não vive sem guerra.

Volta e meia, há sempre algum conflito armado explodindo por aí.

E nenhum outro estilo musical conseguiu falar tão bem sobre as epopeias bélicas que já flagelaram tantos povos, como esse tal de "roquenrou".

Nosso blog preparou, a seguir, uma memorável lista de 15 clássicos que versaram sobre esses confrontos armados entre nações - a maioria deles, é fato, situada em meio à triste realidade da famigerada Guerra do Vietnam (1964-1975), visto que uma grande parte são canções produzidas durante a época do conflito, e sob a sua ótica.

Claro que tem muita coisa que ficou de fora desta seleção: menções honrosas nos sugerem a famosa "Civil War" (1991), dos Guns N' Roses, ou mesmo "Paint it Black"(1967), dos Rolling Stones. Mas não entraram pois, enquanto a primeira aborda muito mais uma situação de caos social, gerada por sentimentos angustiantes de veteranos e ufanismo dentro do seu próprio país (EUA), a segunda não trata sobre a guerra em si, especificamente, em sua letra, mas se tornou notoriamente ligada ao tema simplesmente por ter sido utilizada como trilha sonora principal da antiga série de TV Combate

Mas, caro(a) leitor(a), caso tenha sugestões para debatermos sobre uma próxima listagem, em um próximo post, mande aí nos comentários.

Som na caixa (e bala no pente)...

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1- BROTHERS IN ARMS (1985) - Dire Straits:
Início da década de 80. O governo Reagan liderava uma campanha de ufanismo republicano em todos os EUA, se posicionando contra os palestinos, e o grupo norte-americano Dire Straits, sob a tutela do genial guitarrista/vocalista Mark Knopfler liderava as paradas, desde que haviam despontado com o hit "Sultans of Swing", em 1979. De repente, eles lançam um dos melhores álbuns da década: Brothers in Arms, cuja canção-título carregava as cores da melancolia e do descontentamento com a política bélica de Tio Sam. Foi uma porrada na cara, e uma afirmação do grupo como força musical, e de Knopfler - um ás em seu instrumento - como compositor. Impossível não ouvir esse hino contra a guerra até hoje e não se emocionar: o andamento lento e compassado, emoldurado por camadas de teclados climáticos, reforça a explosão de alguns dos mais belos solos de guitarra já gravados, expressando o sentimento de soldados que veem seus colegas tombando feridos nos campos de batalha. 


2 - HOLIDAY IN CAMBODIA (1983) - Dead Kennedys:
Também na contramão dos movimentos ufanistas dos EUA nos anos 80, a banda punk Dead Kennedys se notabilizou por performances alucinadas e letras ácidas, onde seu líder, o extravagante Jello Biafra, desfilava críticas cáusticas sobre o modo de vida americano e suas hipocrisias. O sucesso da neurótica "Holiday in Cambodia", um dos primeiros singles do grupo, elevou Biafra ao status de um dos principais ativistas políticos do rock. Com sua batida psicótica e guitarras faiscantes, ele satiriza as ilusões de heroísmo criadas nas jovens mentes de quem foi para o Vietnam.


3 - THE UNKOWN SOLDIER (1968) - The Doors:
O mítico Jim Morrison compôs esta elegia sobre a guerra para integrar o terceiro álbum de seu grupo The Doors, Waiting for the Sun - e ela veio acompanhada de um projeto multimídia novo, já que ele e seu colega, o tecladista Ray Manzarek, haviam cursado cinema na UCLA (California), e tinham um pezinho na sétima arte: um dos primeiros videoclipes da história, para promover o lançamento do disco. "Unknown Soldier", portanto, carrega em cheio o estigma de Morrison durante toda a sua carreira - o de promover polêmica. Em pleno envolvimento dos EUA no conflito contra o comunismo no Vietnam, em uma de suas fases mais agudas (final dos anos 60), o vocalista e sua banda lançam essa irônica peça anti-guerra falando sobre o "soldado desconhecido", com a simulação de tiros de um pelotão de fuzilamento (que eles também reproduziam nas apresentações ao vivo), e a mórbida descrição de corpos moribundos nos campos de batalha, sendo exibidos na televisão. Resultado: tanto o clipe (cuja versão original você vê logo acima) quanto a música, foram censurados em várias partes dos Estados Unidos.


4 - ONE (1988) - Metallica:
Inspirada no trágico romance Johnny Vai à Guerra (1939), do escritor Dalton Trumbo, "One" é um dos maiores épicos do Metallica, e reflete fielmente toda a crueldade e bestialidade da guerra, ao retratar o drama de um jovem que, após ser atingindo por um bombardeio em uma trincheira durante a Primeira Guerra Mundial, fica sem os braços e pernas, e sem poder ver, ouvir e falar, mas ainda vivo e sentindo, numa verdadeira prisão física, implorando para morrer. Enquanto no livro o absurdo da situação é tratado com extrema sensibilidade, na música, a banda retrata tal horror com brilhantismo técnico e lírico na parte inicial, bastante melódica, para depois descer o pau - a bateria de Lars Ulrich reproduz com perfeição tiros de metralhadora, neste que é um dos maiores clássicos do thrash metal de todos os tempos. James Hetfield vociferando "Trapped in myself / Body my holding cell" (Preso em mim mesmo / Meu corpo é minha cela) ainda vai ficar durante muito tempo na memória de muita gente... O videoclipe da música - o primeiro produzido pelo grupo - contém cenas do filme baseado no livro, de 1973.


5 - ANGEL OF DEATH (1986) - Slayer:
"Anjo da morte" era o apelido dado ao carrasco nazista Joseph Mengele, que promoveu inúmeros experimentos científicos sádicos com os judeus em campos de concentração na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial. O ataque tonitruante do Slayer, uma das mais brutais bandas metal da história da humanidade, dá o tom perfeito a esse pesadelo bélico da carnificina, a partir do nervoso ataque vocal do baixista Tom Araya. É a música que abre o aclamado disco do grupo de 1986, Reign in Blood.


6 - I FEEL LIKE I'M FIXING TO DIE (1968) - Country Joe & The Fish:
O Festival de Woodstock, em agosto de 1969, celebrizou alguns dos maiores artistas da era flower power, que tiveram a chance de dar ali o seu recado direto, ao vivo, para uma juventude hippie que não entendia os motivos da guerra e da violência de um modo geral. Neste contexto, o grupo do anárquico Joe McDonald, nascido e crescido no politicamente efervescente ambiente contestador da Universidade de Berkeley, tomou o palco, para cantar em ritmo folk sobre as agruras dos marines que estavam indo morrer, sem bem saber porquê, no Vietnam.


7 - ERA UM GAROTO QUE COMO EU AMAVA OS BEATLES E OS ROLLING STONES (1967) - Os Incríveis:
O representante brasileiro nessa categoria que compilamos aqui vem da fina flor da Jovem Guarda, mas a canção original era uma composição de Gianni Morandi, que fez muito sucesso na Itália em 1966, e como os artistas brasileiros daquela época adoravam regravar sucessos da terra da pizza, coube aos Incríveis - um dos mais longevos grupos do rock nacional - a versão para este clássico pacifista, que já abre com uma matadora rajada de metralhadoras nos ouvidos. O dedilhado clássico de guitarra elétrica é uma herança direta dos sons californianos de bandas como The Byrds, e essa cover dos Incríveis se notabiliza pela paixão e entrega com que os rapazes a executam, ainda a incrementando com teclados Farfisa fantásticos e ritmo de marcha, para ironizar a trajetória do garoto que deixa de usar cabelos longos e nem toca mais a sua guitarra, mas um instrumento que sempre dá a mesma nota... ra-tá-tá-tá. Também regravada, com bastante êxito, pelo grupo Engenheiros do Hawaii, em 1990.


8 - 1916 (1992) - Motorhead:
Uma atípica e melancólica valsa marcial para uma banda tão louca e metaleira como a do falecido baixista e vocalista Lemmy Kilminster, o Motorhead, só se explica pelo fato de que é uma homenagem às lembranças de veteranos da Primeira Guerra Mundial, sendo que Lemmy era um entusiasta, profundo conhecedor e colecionador, de itens dessa e da Segunda Guerra Mundial. Faz parte do álbum homônimo, lançado em 1992 - um dos melhores do grupo, em minha modesta opinião. Entra nessa lista bem a título de curiosidade mesmo, além de ser uma bela canção.


9 - WAR PIGS (1970) - Black Sabbath:
Hino da banda original de Ozzy Osbourne - e que eu considero uma das mais perfeitas canções de heavy metal já feitas, por suas mudanças de andamento, viradas e solos - faz parte do segundo disco da banda, a obra-prima Paranoid, e nasceu de alguns improvisos no estúdio, com uma letra diferente. A versão final, em que Ozzy compara os generais e grandes senhores da guerra a porcos no chiqueiro, brincando com suas tropas como se fossem peças de um tabuleiro de xadrez, é uma das imagens mentais mais fortes que a crítica do rock às guerras poderia urdir. Depois, ainda dizem que rock pauleira é coisa de alienado! Vá interpretar as letras, caramba...



10 - SOLDIER OF FORTUNE (1974) - Deep Purple:
A contribuição de um dos maiores nomes do hard rock setentista para o tema é, na verdade, uma declaração de amor do vocalista David Coverdale para os sentimentos das almas errantes de veteranos que não tem um lugar para onde ir senão a guerra. Nessa interessante analogia entre tempos de batalha e paz em corações andarilhos, se destaca a guitarra inebriante do gênio Ritchie Blackmore, em um dos seus últimos trabalhos com o grupo em sua fase áurea.


11 - US & THEM (1973) - Pink Floyd:
A obsessão do líder e baixista Roger Waters pelo evento que marcou e traumatizou a sua infância - a Segunda Guerra Mundial - seria amplamente explicitada em álbuns posteriores do Pink Floyd, como The Wall (1979) e Final Cut (1982). Mas já no mítico Dark Side, de 1973, tal tema aparece nessa pérola, uma bela e pungente canção sobre a insensatez dos conflitos armados. Com um clima estratosférico enlevado pelo lindo piano de Richard Wright, e os vocais angelicais de David Gilmour cantando sobre a loucura dos humanos ao se esquecerem de como são iguais uns aos outros durante conflitos armados, surge a presença de um majestoso coral em seu eloquente refrão, e a banda explora mais uma das horrorosas faces da insanidade moderna, em um disco recordista de vendas que é justamente sobre isso.


12 - PIPES OF PEACE (1983) - Paul McCartney:
A doçura melódica do mais musical dos Beatles fez com que ele seguisse a "luz" pacifista de seu velho e falecido colega John Lennon, para compor e lançar uma das mais belas homenagens ao fim das guerras entre os povos. "Pipes of Peace", música que dá título ao mesmo disco de Paul de 1983, foi puxada nas rádios e TVs por este belo videoclipe, em que ele exalta um momento em que os soldados, em lados contrários nos campos de batalha, parem de matar uns aos outros para celebrar o amor pelos entes queridos, e se enfrentar não com balas e tiros de canhão - mas com uma singela e amistosa bola de futebol. "Help them to see / That the people here are like you and me" (Ajude-os a ver / Que as pessoas aqui são como eu e você).


13 - GIVE PEACE A CHANCE (1969) - John Lennon:
A grande virada na vida de John Lennon - o momento em que ele dá largada à sua carreira solo largando Beatles e tudo para trás, para se enfurnar com a artista japonesa Yoko Ono em um quarto de hotel de Amsterdam e protestar pela paz. Um dos maiores cânticos pacifistas de todos os tempos foi gravado na base do improviso mesmo, com um violãozinho, palmas de amigos e jornalistas que estavam cobrindo a grande hype de ver um Lennon barbudo, com sua nova esposa, assumir seu lado político e messiânico de profeta anti-sistema, e tudo acompanhado por um coralzinho budista: "Give Peace a Chance" estava pronta para a posteridade.


14 - FORTUNATE SON (1968) - Creedence Clearwater Revival:
Grupo representativo do final da década de 60, o Creedence mantinha em suas bases musicais um som tradicional de country rock sob a voz rascante de John Fogerty, seu lendário líder. Mas de vez em quando, eles mostravam que também sabiam fazer protesto contra a guerra: "Fortunate Son" é um tapa na cara da família norte-americana conservadora, que achava sinônimo de orgulho mandar os seus filhos para os horrores do Vietnam.


15 - STAR SPANGLED BANNER (1969) - Jimi Hendrix:
A masterpiece de todas as críticas musicais contra a Guerra do Vietnam - e todas as guerras, em geral - não é uma música cantada. Muito menos uma composição pop original, feita por uma banda contemporânea. Não, nada disso. O maior protesto anti-bélico de todos os tempos foi, e continuará sendo, a rendição épica e inesperada do hino nacional dos EUA, "The Star Spangled Banner", feita pelo maior dos guitarristas, Jimi Hendrix, em sua apresentação no Woodstock Festival, de 1969. No meio de uma jam alucinada com sua nova banda na época (Gypsy Sun & Rainbows), em que foi emendando alguns de seus maiores sucessos, Hendrix recria, durante cerca de 3 minutos e 40 segundos, o tradicional hino do Tio Sam, cometendo a ousadia de distorcer o mesmo nota por nota com seus pedais wah, octave e delay, criando efeitos sonoros inesquecíveis que simulavam o barulho de bombas napalm e morteiros, os motores de helicópteros, e os uivos lancinantes de dor dos soldados morrendo. Sem cantar ou dizer uma palavra sequer, Hendrix pintou a perfeita paisagem, sonora e aterradora, de um conflito vazio e sem sentido no qual o seu país se meteu, gastando milhões de dólares, e ceifando milhares de vidas. Era a última apresentação em Woodstock, encerrando com chave de ouro aquele festival sobre "paz e amor".