quinta-feira, 2 de agosto de 2018

NO TOPO DO PRÉDIO*


Ele vai passar exatamente às 12:45.

É o horário que está programado para ele passar.

E eu ainda não sei porque realmente aceitei essa missão. Mas, tudo que pego pra fazer na minha vida, eu tenho o costume de levar adiante. Não prestei serviço militar, fui dispensado. Não fui recruta, cabo ou soldado. Mas gosto de cumprir aquilo a que sou destinado. Sei lá, acho que me dá um gosto bom na boca.

Me faz dormir melhor à noite.

Mas talvez, agora, eu esteja querendo dormir um pouquinho mais.

Se me perguntassem a razão de ter topado fazer isso, eu diria: não sei, a princípio pensei que fosse raiva. Ódio dum monte de coisas, situações.

Mas raiva já era. Raiva é carvão de churrasqueira, que logo queima tudo e depois não dá em nada. Cansei de ter raiva. A gente tem que ter sentimentos mais longevos do que isso.

E então pensei: mas o que seria, então? Qual é o estopim motivador?

Vontade de enfrentar o medo, de praticar a superação?

No fundo, no fundinho mesmo, acho que não. Pois eu sei que eu dou conta.

Três meses num estande de tiro da fazenda que os caras me arrumaram, fizeram de mim um mecanismo automático. Sem bebidas, sem tremedeiras, sem suor, sem hesitações ou apreensão. A magnificência de sentir o gênio por trás de uma consciência madura, de rigor e disciplina. Os músculos rijos, resultantes da firme intenção. Acordando cedo e enchendo os pulmões de ar puro do campo, todo dia, todo dia mesmo, me levantando às cinco e meia da manhã para mais quinze, dezesseis horas de prática intensiva e resoluta, pausas básicas só para a alimentação e alguma leitura edificante.

Larguei tudo para me dedicar, e ali, eu sabia que era só contar comigo mesmo, eu era tipo Deus controlando o mundo, e bastava observar e calcular, tudo estava ao meu alcance.

Foi a melhor coisa do mundo para eu largar os meus vícios, as minhas paixões. Esquecer mágoas, abandonar rancores, deixar as desilusões, deixar tudo, tudo!

Todas as coisas devem ficar para trás, quando você quer ser o melhor do mundo. Todas as coisas… devem ficar para trás.

Não tinha como escapar da minha mira. Não tinha como falhar.

Com o tempo, passou a se tornar a mais pura expressão física de um impulso magnético, quase instintivo. Os movimentos e o campo de visão já tão treinados para acertar, que passaram a se tornar quase que involuntários. Rápidos, precisos.

E nada como treinar em animais. Alvos imóveis não te adicionam nada. Tem que estar em movimento, porque é ali que a realidade da mira precisa se opera. Animais e humanos: pouca diferença. Na verdade, praticamente nenhuma.

A frieza que se obtém no bom disparo de uma arma de fogo é um dos maiores exercícios de auto-afirmação para o ser humano.

O deslizar do dedo no gatilho do meu Barrett M82, o vibrante puxão resultante de seu inconfundível estampido, impresso na musculatura de meus braços quando pressiono, apenas alguns segundos depois do vislumbre incisivo em sua lente. E pronto.

Não há sensação igual.

Se penso em algo quando atiro? Hum… Provavelmente não. Só mesmo no meu alvo. Até a mente é condicionada à mais pura diretriz da concentração, depois do árduo treinamento.

Quisera ter sido assim em outros tempos.

Hoje, com a cabeça que tenho, e olhando em retrospecto, eu vejo o tanto de bobeiras que eu cometi. O tanto que eu ficava querendo chamar a atenção dos outros, incomodando, feito uma criancinha! Muito passional, e muito dependente de outras pessoas. Esperando demais de quem nada podia me dar. E, por outro lado, dando demais de mim a quem nada deveria de mim esperar. Tudo errado. Eu vejo que me encontrava entregue a um turbilhão de relacionamentos que não me levavam ao que eu realmente queria: me divertir e me satisfazer.

Mas tudo bem, ficar lamentando as coisas não resolve nada, passou. Agora, o que interessa, é só o que interessa a mim mesmo, sem ficar dependendo dos outros.

Eu, senhor dos meus próprios desígnios.

Então, ando chegando à conclusão de que, no final das contas, o que eu imagino que pretendo com tudo isso é fugir um pouco da mesmice. Agitar. Mudar algo. Fazer diferente.

As pessoas precisam sempre ter esse fogo, essa chama interna e prazerosa de querer modificar algo no ambiente em que vivem, e se fazerem notar por conta disso. Ser, como diríamos, um “agente de transformação”. Isso é legal. Isso é interessante.

Isso ajuda a girar o mundo.

E para um cara que não teve muitas chances na vida, como eu, o negócio é inovar. Aquela história: se não dá de um jeito, vai de outro.

Você pode ser um médico, e querer mudar a sociedade. Você pode ser um advogado, delegado ou juiz, e querer mudar a sociedade. Você pode ser um engenheiro, um grande arquiteto, e querer mudar a sociedade. Você pode ser um professor… oh! E querer mudar a sociedade. Mas vamos e convenhamos: pouquíssimos conseguem.

Acho é que ninguém anda mais conseguindo.

Os percalços da rotina e do estresse da vida moderna são muitos, e invariavelmente esses profissionais acabam entrando numa “linha de montagem” e seguindo o rebanho, fazendo e falando a mesma lenga-lenga de outros que vieram antes, e de outros que virão depois.

Parece que tudo ficou mesmo banalizado, e a humanidade se encontra numa chatice só.

Eu tenho andado muito por aí e visto as caras das pessoas. Seus rostos nas ruas expressam desejos irrealizáveis, pânico, insegurança e insatisfação. O caos tecnológico e a piração virtual deixaram sequelas graves nessa cambada de gente podre. Eles andam sonhando com um mundo que foi gaseificado para eles numas latinhas de refrigerante ou cerveja, ou dobrado junto com aquelas roupas que ficam nas vitrines de lojas chiques do shopping center.

Estão todos vivendo nas cabeças de uma meia dúzia de publicitários movidos a ecstasy e skank.

Parece que é isso. É isso aí, de fato.

Chacoalhe todo mundo num coquetel de pressa, dinheiro e redes sociais, e despeje no copo da realidade diária e insana, eis o que você tem: essas pessoas com quem você convive, a humanidade perdida e ensandecida, louca para ainda encontrar por aí alguns gurus que lhes expliquem o sentido.

O sentido de tudo isso.

Não há.

Não há!

Pois não há, não há, e não há!

Não arruma você mesmo algum sentido pra vida, pra você ver onde vai parar.

É por isso que eu ando querendo deixar as coisas mais divertidas.

Eu acho que o mundo está ficando carente de algumas emoções mais autênticas. Maior espontaneidade. As pessoas andam muito cheias de mentirinhas, desculpinhas, tudo para não ferir, não magoar ninguém, mas continuar tudo organizado, sem aquelas soluções que só a VERDADE pode impor.

Às vezes, é salutar ter menos ordem, e mais confusão.

Pois eles organizaram a coisa demais. Eles deixaram tudo certinho demais. Só que agora ficou chato.

Quando você segue muitas regras, não há uma frestinha só para arejar certa autenticidade.

Então, penso que realmente aceitei essa tarefa para alterar um pouco as coisas. Pro inesperado. Pro divertido, irracional e inesperado das situações.

Ver um pouco o circo pegar fogo.

Ele vai passar exatamente às 12:45.

Eu e minha mira inabalável estaremos aqui, aguardando, na companhia de três projéteis 99 milímetros que deverão ir morar bem dentro da cabeça dele.

Aquele ministro vagabundo.


*Este texto não reflete a opinião pessoal do autor a respeito do uso de violência através de armas de fogo como forma de legitimar ações de cunho político ou moral, e constitui tão somente uma obra artística de ficção, assim como outras deste blog (postagens "Um Cara Legal", "Carta para um Amor Perdido", de julho de 2018), que deverão compor um romance a ainda ser futuramente lançado pelo autor, com o título provisório Dácio, o Atirador.

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