quinta-feira, 16 de agosto de 2018

SEM SOMBRA, SEM MORAL


Há 18 anos atrás (agosto de 2000), o diretor holandês Paul Verhoeven lançava uma subestimada obra-prima da fase comercial de sua carreira em solo americano: Homem Sem Sombra permanece como um dos melhores filmes de um notável construtor de parábolas e elegias travestidas com fantásticos efeitos especiais hollywoodianos, mas que sempre desvelam questionamentos sociais e morais profundos, após uma análise mais apurada.

O título original da obra (Hollow Man, ou "homem vazio"), já dá uma noção da analogia que faremos ao nos deparar com Sebastian Caine (papel do talentoso Kevin Bacon), um cientista excêntrico e genial, que conseguirá concluir o projeto de uma fórmula que concede o dom da invisibilidade ao ser humano.

O êxito do cientista logo se configura em um completo desligamento de suas amarras com os princípios éticos e morais que regem a sociedade.

Destituído de sua forma física, pleno em capacidades de praticar qualquer ato sem ser notado, Caine aos poucos se transforma em um monstro amoral pronto para subjugar todos ao seu bel prazer, desprezando convenções e sentimentos alheios.

Os caminhos do crime se apresentam irresistíveis para a sua depravação, e logo ele se mostra o homem "vazio" de caráter e limites que ele sempre escondeu ser.

Várias interpretações da conduta libertina são possíveis ao observamos o desenvolvimento da personagem: a sua total egolatria, típica dos estupradores, ao buscar se satisfazer sexualmente aproveitando dos seres femininos em atitudes voyeuristas e egoístas (ele pode olhar e abusar de suas vítimas, mas elas não podem vê-lo, sentir ou expressar prazer pela sua presença), o sentimento absoluto de superioridade em relação a outras pessoas pela consecução de seus intentos, como em todas as situações em que é confrontado pelo seu contraponto moral, na forma de sua antagonista, a cientista Linda McKay - vivida pela bela Elisabeth Shue, e elevada à condição de heroína da história. Ela oferecerá a ele uma barreira externa, do superego que ele já perdeu.

Verhoeven se afirma autor de narrativas admiráveis, que sempre flertam com os grandes embates psicológicos de nosso tempo: é dele Instinto Selvagem, com a estonteante Sharon Stone e sua lendária cruzada de pernas, uma invulgar homenagem ao poder erótico do desejo e da submissão masculina. Também cometeu Robocop, o clássico, onde o mais interessante do filme é descobrirmos que se trata, na verdade, de um conto melancólico sobre a impossibilidade do ser de viver sem as suas memórias, sem as suas emoções. E fez, também, Tropas Estelares, aventura com cara de ficção científica bobinha, mas que  surpreende pela mensagem subliminar exaltante da firmeza de caráter daqueles que vão até o máximo de seus limites, pela pujança da sobrevivência.

Aqui, ele cria uma brilhante crônica filmográfica em que, como sugere o acertado título  nacional, o cientista Caine não expressa mais a sombra, representante das trevas e rastro de suas ações demoníacas - não mais deixando marcas por onde passa, apaga de sua conduta a imoralidade, a torpeza e leviandade de sua personalidade degenerada. Não obstante, nos momentos em que é necessário que se faça notar, veste outra persona: usa uma máscara, não mais representando a si mesmo, é como se apenas fosse um outro ser... pois o verdadeiro é realmente vazio, apagado!


Como em diversas outras obras artísticas, mais uma vez nos remete ao livro do escritor britânico Robert Louis Stevenson, O Médico e o Monstro, sempre nos oferecendo a inclemente pergunta: até onde todos nós, ao nos tornamos detentores de um poder e um intelecto descomunais, não nos tornamos devassos e absolutistas?

Hitler? Napoleão? Manson? Certos políticos brasileiros...

Lembremo-nos ainda de Fausto, de Goethe - aquele que negociava com o diabo a sua própria alma, em troca de todo o conhecimento do mundo, para que pudesse possuir e usufruir de todas as coisas, inclusive o amor de sua adorada Gretchen.

Quanto vale a alma humana, afinal? Quão longeva e insaciável pode ser a ambição, para que arrase de vez com a constituição social e moral humana?

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