terça-feira, 12 de março de 2019

CADA ÉPOCA TEM O VAMPIRO QUE MERECE

O ator inglês Gary Oldman, na já clássica caracterização de 'Drácula - de Bram Stoker', do diretor Francis Ford Coppola (1992)

A figura do hematófago mais célebre da história da humanidade é coberta por uma aura de misticismo e fascinação que envolve as suas histórias.

O vampiro é, por excelência, o monstro mais representado na cultura popular de todos os tempos. Provavelmente, o mais adorado também.

Misto de humano e morcego, ele foi visto pela primeira vez na forma de um sorumbático conde, recluso num castelo da longínqua Transilvânia, no mítico romance do irlandês Bram Stoker, publicado pela primeira vez em 1897, Drácula.

Para criar a figura do mais famoso vampiro de todos os tempos - aquele que daria início a um filão milionário, tanto nas páginas de livros quanto nas telas de cinema - Stoker teria buscado inspiração nas histórias acerca do lendário príncipe romeno Vlad Tepes, que no século XV defendeu a região em que vivia da invasão do império turco otomano, e se notabilizou por utilizar o cruel método da empalação em suas vítimas. 

Apesar de não existirem registros de que Vlad ingerisse o sangue daqueles que matava, a sua crueldade e profunda falta de compaixão pela raça humana fizeram dele um homem temido e odiado, que os aldeões da época juravam ter feito alguma espécie de pacto com o demônio - ele chegava a ter prazer em montar banquetes e comer diante de corpos empalados ou decepados, jorrando sangue! 
Representação gráfica do príncipe Vlad Tepes, que inspirou o vampiro Drácula - ao fundo, os corpos empalados pelo carrasco

Isso deu a ele o apelido Draculea ("filho de Dracul"), visto que seu pai também era um guerreiro sanguinário, que havia recebido a alcunha Dracul, uma expressão vulgar dos camponeses da época que significava, justamente, "demônio". Historiadores creem que, a partir daí, teriam se originado todos os mitos que davam conta de que Vlad e sua família tinham parte com o coisa ruim, e poderiam até mesmo se alimentar de sangue.

O romance de Stoker, por sua vez, foi lançado na Inglaterra do final do século XIX, uma época em que o Reino Unido passava por um período turbulento de crises sociais, em que as cidades tentavam se adaptar ao advento da Revolução Industrial, com uma grande massa populacional abandonando o campo e indo trabalhar, sofrer e morrer nos lúgubres bairros de uma Londres imunda e violenta. 

Nesse sentido, Drácula foi o livro certo, na hora certa - o clima gótico na descrição do castelo do conde e dos becos escuros de Londres, mais a sensação claustrofóbica sugerida pela paixão proibida de um morto-vivo por sangue humano, sobretudo extraído através de mordidas no pescoço de mulheres (o que lhe conferia certa sensualidade), geravam uma fábula niilista dos novos tempos, em que o leitor oprimido pela realidade  depressiva, terminava por se identificar com a esquizofrenia do protagonista: Drácula é inicialmente visto como um anfitrião de bons modos, quase que um perfeito lorde vitoriano, mas aos poucos revela a sua personalidade decadente e pervertida.

Algumas décadas adiante, com o sucesso de uma nova forma de expressão artística denominada cinema, a "sétima arte", logo grandes obras da literatura seriam buscadas e adaptadas para a realização de filmes, e a história do conde sanguessuga foi uma delas.
Cartaz original do clássico 'Drácula', de 1931

Em 1931, com o húngaro Bela Lugosi no papel do vampiro, Drácula, do diretor Todd Browning, se tornou um dos primeiros grandes sucessos do cinema de horror, reproduzindo em imagens a trama do livro, com algumas pequenas diferenças. 

Em muito ajudava a forte expressão facial de Lugosi na caracterização do monstro. Pálido e introduzindo em seu rosto olhares de ódio e angústia que reproduziam perfeitamente a psique do vampiro, o ator ficou para sempre marcado pelo personagem, e nunca mais conseguiu papéis de êxito fora de tal interpretação, sendo obrigado a repetir sua atuação em filmes posteriores.
Bela Lugosi, como o Conde Drácula: o ator nunca mais conseguiria se livrar da personagem


Com a chegada dos anos 1950-1960, o mundo vivia uma atmosfera de repressão e moralismo, atiçada pelo confronto ideológico da Guerra Fria, que tomou o globo no período pós-Segunda Guerra Mundial.

O mais simples embate entre comunistas e capitalistas era capaz de gerar um patrulhamento ferrenho acerca de preceitos comportamentais. Quem era mais "certinho" e dentro dos padrões, era de direita. E quem era mais liberal e contrário a certas convenções, era de esquerda.

Na trilha de toda a onda contracultural que dominaria as artes a partir desse período, os criativos cineastas dos filmes 'B' (de baixo orçamento) de uma certa produtora de filmes britânica chamada Hammer Productions lançaram, em 1958, uma nova versão de Dracula, com o soturno inglês Christopher Lee revivendo magistralmente a figura do vampiro. O papel caiu como uma luva para o corpo esguio, a voz grave e o olhar tétrico de Lee, sendo que a nova encarnação do conde criou fôlego para mais uma série de bem sucedidas continuações.
Christoher Lee, no papel do vampirão

De certa forma, Drácula assumia um tom anárquico para as novas gerações. Ter uma atitude 'vampiresca', de repente, se tornou hype - ser vampiro, para toda uma galera rebelde que curtia o então nascente rock and roll, era como ser um outsider, gostar de curtir e viver a noite, e não querer enfrentar os alhos e água benta dos Van Helsings de plantão, sendo esse um modo de estabelecer uma nova postura diante da sociedade careta e conservadora da época. 

A partir de novos paradigmas ditados pelas mudanças de valores e costumes da década de 60, a figura do Conde Drácula poderia até mesmo assumir um papel sexualmente liberal, consolidando de vez aquilo que, no romance de Bram Stoker, era apenas sugerido: a predileção do vampiro por belas jugulares femininas - dando preferência, inclusive, a mulheres noivas ou casadas (Lucy e Mina, do livro original).


A partir daí, é que começa uma reviravolta na imagem da criatura. E os vampiros passam a ter um maior enfoque de erotismo e sensualidade no seu ataque às vítimas.

 
Isso passaria a ser explorado ad nauseam pela literatura e cinema contemporâneos.

São exemplos nítidos disso: a comédia escrachada de vanguarda do diretor Roman Polanski, A Dança dos Vampiros (1967), o vampiro erótico encarnado por David Niven em Vampira (1974), o arremedo em forma de sátira disco desempenhado por George Hamilton  em Amor à Primeira Mordida (1978), ou o extremamente galante e sedutor Frank Langella na readaptação de Dracula, do diretor americano John Badham (1979). Também bebe fartamente nessa fonte o vampiro playboy e yuppie vivido por Chris Sarandon, na primeira versão de A Hora do Espanto, que fez muito sucesso nos cinemas em 1985.




 Três momentos célebres e distintos dos vampiros no cinema: a paródia de 'Dança dos Vampiros', de Roman Polanski (1967), o Drácula galã interpretado por Frank Langella em 1979, e Chris Sarandon como o jovem vampiro playboy, em 'A Hora do Espanto' (1985).

Não podemos deixar de lembrar o aprofundamento psicológico que o personagem sofre, também nas mãos de autores e diretores mais existencialistas, que investigam a fundo as neuroses e ânsias de um ser condenado a viver eternamente em busca de sangue.

Faz parte dessa proposta a refilmagem feita por Werner Herzog de Nosferatu - O Vampiro da Noite, em 1979, de um clássico alemão de mesmo nome realizado por Friedrich Wilhelm Murnau em 1922, e que nada mais era do que uma adaptação do Drácula de Bram Stoker - só que mudando o nome de quase todos os personagens e da criatura para "Nosferatu", pela ausência de pagamento de direitos autorais para a família do escritor.

O que as duas versões tem em comum é o profundo sentimento de vazio e desespero social que assolava a Alemanha em ambas as épocas - em 1922, era uma nação destruída e tentando se reerguer nos escombros da Primeira Guerra Mundial, e no remake de 1979, era um país que já tinha passado pela avalanche da dominação ideológica nazista, e atravessava ainda um forte período de economia recessiva, devido à crise do petróleo.
Nosferatu (1979), de Werner Herzog

Todo esse clima é traduzido nas imagens góticas e aterradoras dos ataques do vampiro a suas vítimas. Nosferatu reflete a própria sensação de frieza, terror e incerteza que a Alemanha vivia, em tão atribulados dias.

De qualquer forma, na sua releitura do mito de Drácula, o vampiro Nosferatu revela também a face mais obscura da agonia do ser, com suas longas garras demoníacas e uma feiura horrenda e esbranquiçada no rosto carrancudo, refletindo a impossibilidade de tomar para si uma mulher que pertence ao mundo dos vivos, ainda que perdidamente apaixonado por ela. A representação cadavérica e angustiada do vampiro Nosferatu o retira da zona de conforto do charme e da sensualidade, e o aproxima muito mais da figura diabólica da insatisfação, da inveja e do desejo, como peças propulsoras de um mal absoluto - o que foi bastante realçado na versão de Herzog em 1979, com a brilhante interpretação de Klaus Kinski como o vampiro.

Inesquecível também é aquela que tentou ser a mais fiel adaptação para os cinemas do romance de Bram Stoker - inclusive fazendo questão de carregar o nome do autor no título, Drácula - de Bram Stoker, de 1992, do cultuado diretor Francis Ford Coppola (O Poderoso Chefão, Apocalypse Now), traz um aristocrático Gary Oldman no papel do vampiro, e apesar dos maneirismos de arrojo visual e narrativo típicos de Coppola - que acabou inevitavelmente acrescentando o seu toque à história - consegue reproduzir escrupulosamente em detalhes todas as nuances do livro, inclusive utilizando o seu formato epistolar (a narrativa original dos personagens se dá através de cartas).

Mas então chegamos ao início do século XXI, e as lendas vampirescas tomam uma outra proporção, mais adequada às novas gerações que consomem cultura pop adolescente, e compram boxes pela Amazon e Walmart: a coleção de livros da saga Crepúsculo, de autoria da escritora Stephenie Meyer, bate recordes colossais de vendas, e tem seus direitos vendidos para uma adaptação cinematográfica em 2008 que, por sua vez, também deixa plateias do mundo inteiro hipnotizadas pela história de amor teen vivida por Isabella Swan e o vampiro Edward Cullen.

Aqui, o mito maligno é totalmente convertido em um ser carismático, capaz de se apaixonar e se oferecer para sacrifícios pelos humanos, e até mesmo formar uma família, obedecendo a um padrão moral rígido e condizente com os sonhos românticos de jovens do mundo inteiro, que chegaram a estragar a tinta da parede de seus quartos, de tanto colar pôsteres do Robert Pattinson - que apesar de desempenhar o vampiro mais fresco da história do cinema, e hoje em dia nem querer se lembrar disso, foi alçado ao estrelato justamente por esse papel...

No Brasil dos anos 2016-2018, em plena efervescência dos memes e da cultura do bafafá nas redes sociais, com suas loucuras, brigas políticas e fake news, ainda fomos apresentados a um senhor pra lá de vampiresco, que não estrelou filmes e nem protagonizou livros (apesar de já ter escrito alguns), mas que calhou de ser o nosso Presidente da República com o maior índice de rejeição popular até hoje - eis que, das acusações do deputado evangélico Cabo Daciolo sobre pactos satânicos, e teorias da conspiração que o demonizaram, surge Michel Temer, o vice de Dilma Roussef que assume o posto após o impeachment dela (e também é acusado de trairagem). 

Sem dúvida, o político com mais cara de hematófago que o nosso país já produziu até hoje...

Em toda essa extensa época de turbulências morais e sociais, parece que a única certeza que resta de tantas reviravoltas recentes no poder, é a de que os verdadeiros vampiros de nossa realidade são os que sugam cada gota do sangue de esperança da população, saqueando sem dó os cofres públicos abarrotados do nosso suado dinheiro de impostos.



Como podemos perceber, cada época tem o vampiro que merece.

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