quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

BOWIE EM GLASTONBURY - E O DESAFIO DA VOLTA À REALIDADE


Saudade de David Bowie. Um artista genial, um cara sempre à frente de seu tempo. 

Começou a mostrar o diferencial de seu talento justamente quando passou a olhar insistentemente para o futuro, cantando sobre as agruras de um astronauta perdido em órbita, em plena era de ouro da corrida espacial - seu primeiro grande sucesso, a obra-prima "Space Oddity", música que o alçou ao estrelato em 1969, serviu como trilha sonora da chegada da Apollo 11 na lua, de várias estações de TV que retransmitiam o sinal norte-americano via satélite enviado pela Nasa, naquele momento histórico.

Ou seja, na hora em que Neil Armstrong dava aqueles pequenos passos para um homem, mas gigantescos para a humanidade, em solo lunar, era a voz de Bowie que estava sendo ouvida ao fundo, por milhões de pessoas no globo terrestre.

Esse inglês loiro e magrinho era um figura futurista e peculiar mesmo.

Alguns anos depois, já sem conseguir repetir o sucesso daquele seu primeiro hit nas paradas, e com receio de cair no mesmo ostracismo de tantos outros ídolos teen que Reino Unido, EUA e outros países produziam e descartavam aos montes, ele mais uma vez olhou para as estrelas e, misturando passado, presente e futuro, bolou um personagem sensacional, urdindo em sua cabeça toda uma caricatura sobre a mitologia pop e suas lendas, manias e vícios, na forma de uma "historinha conceitual" sobre o ser extraterrestre que vinha para a Terra, aprendia a tocar guitarra e montava uma banda, e depois de se tornar famoso e ganhar milhões de dólares, era sacrificado pelos seus próprios fãs: eis a gênese de sua performance mais famosa, na pele do extraterreno Ziggy Stardust.

 'The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars' - disco seminal de 1972 que catapultou Bowie para a fama mundial, na pele do roqueiro marciano Ziggy Stardust

De 1972 até meados de 74, o uso desse papel por Bowie - uma ousada incursão pelo gênero do rock dramático e teatral como jamais se vira antes - fez a cabeça de milhares de jovens pelo mundo inteiro. E fez com o que cantor tivesse certeza de uma coisa: o sucesso de sua carreira estaria em sempre em inovar, e se reinventar.

Dali em diante, foram diversas, inúmeras vezes, em que o cantor trocou de persona, experimentou sons, tendências e modalidades das mais variadas, e provou ser de um ecletismo à toda prova - chegou a ser um dos responsáveis pela moda da música new wave nos anos 80 (com discos como Scary Monsters e Let's Dance), e surfou tranquilamente na onda do rock de vanguarda e pop eletrônico durante todos os anos 90 e parte dos 2000.

Para o ambicioso Bowie, parecia não haver limites ou fronteiras para a criatividade. Apenas possibilidades. Nunca teve medo de ousar, de tentar o diferente.

Até que, em 10 de janeiro de 2016, após uma tortuosa batalha contra um câncer de fígado, aos 69 anos, a sua voz finalmente silenciou.

Mas ficou a lição de sua força para inovar, da persistência em se recriar. A obra e o mito. E, do lado da obra, principalmente, os registros de suas apresentações - vigorosas e inesquecíveis.

Uma delas, que mais me chamou a atenção - por ser também um dos últimos grandes momentos do cara - é o fenomenal show dele no festival inglês de Glastonbury, no ano 2000, lançado em CD duplo no final do ano passado.

Ali, em um evento tradicional da juventude britânica, o músico ofereceu ao gigantesco público presente uma revisão geral de toda a sua carreira, passada a limpo em 21 canções executadas de modo básico, sem firulas ou invencionices nos arranjos, com uma banda modesta e competente, e nos moldes padrão do rock - era um Bowie mais simples, em um palco insolitamente clean se comparado às suas antigas turnês, sem os arroubos teatrais de figurinos, maquiagem e trocas de estilo chocantes do passado. Mas o que acontecia ali, sem muitos perceberem, era mais uma vez Bowie se reinventando.

Só que agora, back to basics - de volta ao básico. O homem estava explorando todo o seu repertório de maneira despojada, limpando a gordura e mostrando uma estrutura mais visceral, como que para dizer às novas gerações que ali, apesar de todos os enfeites, marketing e extravagâncias visuais de suas outras eras (e encarnações), no fim simplesmente restava aquilo: a música. Real, pura, imponente.

E que música! Dá-lhe rendições acachapantes de alguns dos seus maiores clássicos: "Golden Years", "China Girl", "Rebel Rebel", "Heroes" e a própria "Ziggy Stardust" são algumas das pérolas que compuseram o setlist daquela noite memorável.


Bowie no show de Glastonbury (2000)

O que me faz pensar é que seria bom que, na prática, tomássemos ao menos um pouco dessa atitude de Bowie em um de seus últimos grandes shows como lição, para esse início de 2019 que já tem se mostrado tão inseguro, imprevisível e esquisito.

Há um cheiro desagradável de pânico no ar, vindo da apreensão e ansiedade coletiva por situações a se resolver, flutuando ainda no poço dos sonhos de um réveillon feito às pressas, para dar cabo logo de um agonizante 2018. Nosso relógio do tempo querendo acelerar os ponteiros para que o caos financeiro e social termine, para que os ânimos se acalmem e as contas se estabilizem. E torcendo para que o poder público acabe com todos os nossos problemas.

Hum... infelizmente não é assim que as coisas acontecem. 

Os problemas não vão acabar. Eles estão aí e simplesmente continuarão. 

Cabe a nós, em diversas circunstâncias, nos adaptarmos a eles, enquanto realmente não acabam. Assim, quando de fato acabarem, provavelmente nem perceberemos. Ou nem terão importância mais.

Faz muita falta no mundo, ultimamente, voltarmos ao básico.

Abandonarmos um pouco as redes sociais, focarmos mais no que temos que fazer de efetivo, na vida real, no contato cara a cara com as pessoas, e arregaçar as mangas para encarar melhor essa realidade. Ou seja: precisamos voltar ao modo básico de enfrentar a realidade.

Divulgar feitos no Twitter, Facebook ou Instagram é bom. Dá visibilidade, é o marketing da nova ordem mundial. Os políticos, principalmente, estão adorando. Mas tais feitos tem que ter consistência, sustentação. 

Não devem se constituir em mera falácia.

Um comentário: