quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

O FIM (DE MIM) - NOVA PROGRAMAÇÃO MENTAL


- Apague. - eu disse - Apague tudo e implante novamente.

A assistente técnica da Recondução Social, departamento da grande empresa responsável pelas recargas de personalidade, uma senhora loira de seus 60 e poucos anos, maquiagem um pouco excessiva e sorriso amável, me olhou fixamente.

- Você... tem certeza que não quer? Não quer mais ser como era? Nada? Não está mais satisfeito com o que foi até hoje?

- Não. Nada. - respondi secamente.

- Mas você sabe que nenhum ser humano é perpetuamente satisfeito, e que por nossa própria natureza fatidicamente errante somos protótipos fadados a falhar ou nos decepcionar em qualquer momento, apesar de conseguirmos ter elevado ao máximo os nossos níveis de consciência emotiva e percepção com a adoção das recargas, desde 2057, não é? - ela argumentou.

- Sim, senhora. Eu sei.

- Olha, você me desculpe eu estar conversando assim com você, mesmo após você já ter passado por toda a anamnese inicial e o estágio de preenchimento dos formulários, mas... você sabe como são essas coisas, né. A burocracia. Eu... estou apenas cumprindo o meu papel. Eu recebo por isso.

E ela se aproximou um pouquinho mais de mim, sussurrando ao lado do meu ouvido direito:

- Somos vigiados aqui.

- Eu entendo. Sem problemas. - respondi.

Provavelmente, ela tinha conseguido regular para um volume mais baixo os campos de captação sonora dos chips em nossos corpos e em todo o ambiente do departamento, com algum daqueles bloqueadores de tecnologia extraterrestre contrabandeados da Área 51, depois que ela foi sucateada.

Por isso, imaginei que ela conseguia falar mais baixinho comigo daquele jeito sem ser descoberta.

- Bom... vamos lá, então. Hora de preparar o ambiente.

Ela me conduziu até uma sala branca com uma cadeira azul reclinável, parecida com aquelas de dentista - só que para a pessoa se deitar de bruços, e sem camisa.

Assim que eu me encostei lá, a técnica já foi colando todos aqueles fios transmissores em mim, desde a base do meu crânio (na nuca), até a curvatura final lombar, na altura das últimas vértebras antes de minhas calças.

Eu estava sendo conectado ao servidor das recargas.

Todos os transmissores tinham que estar estrategicamente posicionados. Uma falha boba qualquer poderia ser fatal na comunicação de todo o sistema neural que irradiava do meu cérebro até a coluna, medula, e dali, se ramificando, para todos os meus órgãos e membros.

Pois eu estava prestes a me tornar um novo homem. Mais uma vez. 

- Você tem certeza que é esse perfil pré-determinado que você deseja? - ela me perguntou, já notando que era, em certos aspectos, radicalmente diferente do meu atual.

Eu apenas balancei afirmativamente a cabeça. 

Já estava cansado até do meu tom de voz, do jeito que eu estava sendo. Estava cansado de tudo. Da família que eu tivera até ali, do trabalho, das amizades, de todo o círculo de relacionamentos em volta de mim, e da forma como eu me comportava diante de tudo em minha existência.

No novo ser que, em poucos instantes eu me tornaria, já estava previsto pelo contrato da empresa que, dali em diante, em nada mais eu teria obrigações com o meu 'eu' anterior, ficando todas as questões inclusas nos encargos administrativo e jurídico deles, que eu já havia pago, para que fossem resolvidas. E logo eu teria uma nova identidade, uma nova bagagem intelectual e emocional para lidar com uma nova carreira, um outro lugar para ir morar, e um outro estilo de vida, e em mais nada eu iria ser ou parecer com o que era até agora.

Até outras memórias eu poderia ter! Caso pagasse as taxas adicionais, obviamente.

Essas coisas são caras. E já era a terceira vez que eu recorria à recarga. E a última, esperava eu.

Mas é um dos prazeres do mundo moderno. E acessível para quem pode dispor de um considerável valor financeiro para ter uma nova chance. Uma nova vida.

Graças a essa tecnologia disponível, podemos nos tornar outras pessoas.

- Me desculpe a indiscrição. Eu... sei que sou chata com alguns clientes, e um dia desses até fui advertida sobre isso. Mas é porque já presenciei várias recargas que deram errado. Crises de existência regressa. Desejos de um passado sobreposto, deletado. E... por isso eu pergunto várias vezes para todos que vem aqui, se eles realmente desejam a mudança. A recarga

Ela falava isso para mim, já percebendo certa impaciência de minha parte, enquanto ajustava o último fio, bem na região central do meu cerebelo.

- Eu notei que o senhor escolheu o perfil mais impulsivo de nosso banco de dados. O mais agressivo. Imagino que algo o feriu muito nessa vida que o senhor está prestes a deixar.

Já não era permitido a mim mexer mais nada em meu corpo a não ser a boca, principalmente porque em alguns minutos eu teria que morder uma placa protetora de silicone, para evitar o forte ranger de dentes durante a descarga expansiva de energia que o choque da recarga produzia. Contratualmente, eu tinha que me manter paralisado, para que nenhum daqueles fios saísse do lugar, ou eu mesmo seria o responsável legal por colocar tudo a perder em minha recarga de personalidade.

E depois a empresa poderia me jogar em algum manicômio por aí.

Mas, mesmo sem mexer a cabeça um centímetro sequer, consegui dizer para aquela senhora, em sóbrio e bom tom:

- A imaginação de uma pessoa é uma dádiva divina, derivada de uma grande inteligência. Admiro a senhora por sua percepção aguçada.

Pude ouvi-la dando uma leve risadinha.

Ela foi até o console, ajustou alguns níveis no painel de controle, e pegou a placa protetora de silicone para a boca. Foi se aproximando de mim.

Assim que ela se agachou diante de mim para colocar a placa em minha boca, ela mais uma vez me fitou com aqueles olhares piedosos - grandes olhos azuis e atenciosos.

- Receio que, na tua próxima personalidade, o senhor não tenha a "dádiva divina" de me dar uma resposta como essa. Com esse humor, esse charme e ironia. Isso exige uma vivência, uma tolerância... estão se tornando raras em nosso tempo personalidades desse jeito. Isso são coisas que algumas pessoas talvez não valorizem, mas outras sim.  


Ela rapidamente enfiou a placa em minha boca. Quase que com certa raiva. 

Então se levantou e me encarou pela última vez, antes de ir para o painel de controle para ativar o processo.

- O senhor é muito inteligente também. Ou era, a partir de agora. Sabe de uma coisa? O grande sucesso de nossa empresa não está na vontade das pessoas mudarem totalmente quem elas são. Está na insatisfação delas por não terem encontrado as pessoas certas.

Pronto. Ela ATIVOU O LED 'START' DO PAINEL. O processo vai começar.

"Pense firme numa coisa pela qual você se manteria vivo, pra valer. Uma coisa pela qual você se agarraria no fio da vida, por mais tênue que ele estivesse. Isso é para garantir, caso algo comece a dar errado durante a transmissão de sua nova personalidade, que possamos voltar atrás. Por alguns segundos. E te manter vivo!"

Os riscos envolvidos em tudo.

Bombardeado por aquelas descargas que extraíam quem eu fora, para por outro no lugar.

O corpo estremecia, estremecia... A temperatura subindo, altíssima. Dor.

E no meio de tudo, ela.

Sim, eu a via.

Eu via, afinal, o sorriso lindo que ainda me mantinha ali, quem eu era. Quem eu estava deixando de ser.

Eu via, nos últimos momentos, o sorriso lindo de Helena.

"Mas depois que a luz do painel piscar ao máximo, solte. Esqueça. Deixe ir. E se deixe levar, se abandone. Fique o mais leve possível. Aí já não será mais preciso - e nem será mais possível - voltar a ser o que você era."

Tudo se apagou. E então, clareou novamente, num átimo de segundo.

Eu me via agora em uma casa branca, tudo branco, um ambiente totalmente alvo e vazio.

Estava num ambiente que parecia uma grande sala ou copa, com várias portas e um longo  corredor que levava a outras portas do que deveriam ser quartos.

Havia uma porta aberta, de saída para um vasto deserto. De imensidão incalculável, da qual não dava para se ver mais nada ao longe. Parecia que eu estava no meio do nada.

Resolvi entrar pelo corredor, para ver o que encontrava.

Fui andando, olhando as portas fechadas em cada lado do corredor. Elas eram de formatos um pouco diferentes umas das outras, de maçanetas e desenhos na madeira diferentes. 

De repente, me aproximei de uma do lado esquerdo, que chamou a minha atenção. Ela tinha algumas rachaduras, e parecia ser mais rústica e envelhecida, com um formato de maçaneta aparentemente pesado e com certa ferrugem.

Fiquei mais curioso com ela, em relação às outras.

Me atrevi a tocá-la. E passar a mão em sua maçaneta para tentar abri-la. 

Não estava trancada. Abri.

Um grande clarão se apossou de mim, ofuscando a minha visão. E então, assim que consegui abrir os olhos novamente, eu estava de volta à sala de controle da recarga de personalidade.

A senhora que conduzira o processo estava terminando de retirar os fios transmissores de mim. Logo ela me ajudou a levantar da cadeira, e já foi perguntando o meu nome para se certificar de que eu era quem eu havia escolhido ser.

Sim, tudo havia dado certo. 

Diante do toque das mãos dela, ajudando a me erguer para que eu ficasse em pé, comecei então a perceber como os tratamentos de estética de nossa época fazem com que essas mulheres mais velhas fiquem muito mais atraentes do que as novas.

Instantaneamente, veio aos meus pensamentos a vontade de possuí-la. 

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